SHIP: Onde a economia encontra a sustentabilidade
Introdução
O SHIP (Solar Heat for Industrial Processes), ou Calor Solar para Processos Industriais, é uma tecnologia capaz de trazer vários benefícios para o setor industrial, mas só recentemente conseguiu se demonstrar viável também do ponto de vista financeiro, trazendo economias de até 71% sobre o kWh-térmico gerado pela da queima de combustíveis fósseis.
O objetivo deste artigo é mostrar um panorama da matriz energética industrial brasileira, com foco em alternativas limpas aos combustíveis fósseis utilizados na geração de calor de processo (gás natural, GLP e diversos óleos combustíveis). Além disso, vamos abordar cenários envolvendo a utilização de tecnologias solares em substituição a alguns dos combustíveis mais utilizados dessa matriz, seus prós e contras, as possibilidades existentes para a indústria se tornar mais competitiva e blindada em relação às flutuações nos preços dos combustíveis e fatores que influenciam na viabilidade técnico-financeira da escolha correta de uma dessas tecnologias.
Com o conceito de Indústria 4.0 sendo cada vez mais abraçado, o planejamento da produção será feito de modo muito mais eficiente, baseando-se em maior e mais qualificada aquisição de dados, cuja interpretação será de grande importância para o aumento de lucratividade e competitividade do setor. Esses ajustes finos, somados ao aumento de eficiência energética e à utilização de fontes geradoras solares que permitem prever a longo prazo seu custo de energia, permitirá uma previsibilidade de gastos operacionais e tornará seu planejamento estratégico muito mais preciso.
Tecnologias termossolares, como coletores planos, de tubos à vácuo e concentradores diversos são cada vez mais utilizados mundialmente para fornecer água quente e vapor até 400°C (baixa e média temperatura – BT e MT).
Panorama energético-industrial brasileiro
A análise dos dados anuais do Balanço Energético Nacional mostrou os quatro segmentos industriais com a maior demanda de calor nessas faixas de temperatura abaixo de 400°C, elencando aqueles mais adequados para o uso do Aquecimento Solar para Processos Industriais (SHIP): alimentos e bebidas, papel e celulose, químico, têxtil e couro. (Solar Payback, 2018)
• O gasto de energia no setor industrial quase duplicou desde 1990, passando de 43,5 Mtep (milhões de toneladas equivalentes de petróleo) para 84,2 Mtep, fato que chama atenção para a necessidade de medidas de redução de custos e de energia (ver item 1.3).
• A energia em forma de calor predomina no consumo energético do setor industrial, enquanto o de eletricidade permaneceu estável nos últimos 20 anos com apenas 20 % de participação. Portanto, para atingir a estimada meta nacional de redução de emissões no setor industrial (redução de 30 %, até 2030), precisa se concentrar nas medidas de eficiência da demanda de calor.
• O SHIP pode economizar uma quantidade significativa de custos com combustíveis ao longo dos 20 anos de sua vida útil dos equipamentos.
• A menos que a biomassa tenha um custo logístico muito alto, não há viabilidade econômica de substituí-la por fontes termossolares, de forma que, em meu estudo, tal viabilidade se verifica quando há utilização de combustíveis fósseis e eletricidade.
• Benefícios adjacentes do SHIP também devem ser considerados, como incremento nos índices de sustentabilidade e valorização dos papéis negociados na bolsa, reconhecimento social, valorização da marca, blindagem contra flutuações no custo de combustíveis, acesso a incentivos regionais, etc.
Dos combustíveis fósseis, o gás natural é o de menor custo. Mesmo assim, de acordo com a Empresa Brasileira de Energia (EBE), entre 2007 e 2016 houve um aumento de 147% em seu custo. De acordo com suas previsões, a expectativa é que, superada a crise econômica, o Brasil tenha de importar entre 94 milhões e 122 milhões de m³/dia de gás natural, ou seja, mais que dobrar as importações de gás natural nos próximos 10 anos. (CNI, 2016)
“Há uma série de incertezas sobre o mercado de gás no Brasil. A oferta do produto nacional é insuficiente para atender o consumo, que cresceu cerca de 50% entre 2005 e 2014. No período de 2000 a 2010, a expansão do consumo foi liderada pelo setor industrial e, de 2011 a 2014, as termelétricas foram as grandes compradoras de gás natural. Em 2014, as termelétricas responderam por 45% do consumo nacional de gás natural e, desde 2011, a participação do setor industrial no consumo permanece em 40%. No modelo atual do setor elétrico, as termelétricas são acionadas em períodos de falta de água nos reservatórios das hidrelétricas. A falta de previsibilidade para a demanda de longo prazo representa um obstáculo para expansão do mercado de gás natural. Os investimentos na cadeia têm um longo prazo de maturação, geralmente acima de 20 anos. Sem contratos firmes de demanda, o Brasil é obrigado a comprar gás no mercado spot, em que os preços são mais altos do que os praticados nos contratos. Isso encarece a energia gerada pelas termelétricas e eleva os custos da indústria e dos demais consumidores.” (CNI, 2016)
A utilização de tecnologias limpas e renováveis, como a SHIP, permite à indústria prever e congelar ao menos uma parcela de seu custo operacional com combustíveis pelos próximos 20 anos, blindando-se contra flutuações nos preços desses combustíveis.
Nota: Estamos desconsiderando uma análise comparativa em relação à biomassa, a forma mais barata de se gerar energia térmica atualmente, cuja substituição por qualquer fonte solar é inviável do ponto de vista econômico. Sua pegada de carbono é quase neutra. Porém, vale a pena observar o outro lado da biomassa, pouco comentado, que é a emissão calor e de NOx na atmosfera, com impactos nocivos à saúde animal, humana e vegetação. São também precursores da formação de ozônio (O3) e consequentemente do smog urbano, que deixa o ar com tonalidade marrom acinzentada, sendo este fenômeno intensamente irritante aos olhos e mucosas.
Demanda de calor na indústria brasileira
Demanda de calor na indústria brasileira – 59 % abaixo de 400 °C [Fontes: Saygin 2014 e EPE 2017a]
As tecnologias SHIP conseguem atender aproximadamente 59% da demanda de calor na indústria brasileira, abrangendo processos cujas temperaturas estão abaixo de 400°C.
Na indústria química, 52% do calor requerido pelos processos estão abaixo de 400°C, equivalentes a 2.54 Mtep (milhões de toneladas equivalentes de petróleo). Esse calor é gerado principalmente por combustíveis fósseis, de acordo com o gráfico, e podem usufruir das vantagens das tecnologias termossolares.
Fonte: EPE 2017a
SHIP: Tecnologias disponíveis
O princípio de integração do SHIP aos processos industriais é relativamente simples. Um campo solar composto de coletores termossolares aquece um fluido em circuito fechado, que, após aquecido, passa por um trocador de calor que transfere energia térmica para um termoacumulador, diretamente para um processo industrial ou pré-aquecendo o condensado, antes de entrar no boiler.
Devido à diversidade de tecnologias, citaremos as principais sem detalhar tecnicamente cada uma delas, pois transcende o objetivo deste artigo, que focará apenas nas tecnologias possíveis de serem implementadas na indústria química brasileira, sob o ponto de vista técnico-financeiro.
Existem dois grupos de coletores solares, os coletores estacionários e os com rastreamento.
Cada tecnologia tem particularidades que determinam sua viabilidade técnica e financeira num dado ambiente, este que, por sua vez, é composto principalmente por características naturais ambientais (irradiação direta e indireta, tipo de sujeira no local, temperaturas ambiente, salinidade, etc) e político-tributárias (existência de incentivos fiscais para redução de emissões com tecnologias limpas, linhas de financiamento especiais para esse tipo de tecnologia, políticas de preços de combustíveis, políticas de utilização de biomassa), entre outros.
A faixa de temperatura que cada coletor consegue atingir é apenas um dado nominal, e deve ser interpretado e analisado tecnicamente com base nas condições ambientais e nas necessidades do processo industrial considerado. Entretanto, para ilustrar, podemos segmentá-los por temperaturas de operação, como mostra a ilustração abaixo:
Os fatores que devem ser analisados variam bastante. Em ambientes completamente sem nuvens, com céu azul na maior parte do ano, que exigem temperaturas acima de 150-200°C, concentradores Fresnel, por exemplo, podem ganhar pontos extras. Por outro lado, em regiões onde ao longo do ano as condições ambientais variam bastante, havendo muita irradiação global, mas com pouca irradiação direta em relação à irradiação difusa, coletores planos à vácuo possuem uma curva média de eficiência geralmente maior, produzindo energia térmica tanto em tempo nublado como em dias de céu azul, uma vez que também utilizam a irradiação difusa para produzir calor.
Outro fator a ser considerado é a complexidade da manutenção, que abrange tanto a frequência da necessidade de limpeza e disponibilidade de água, como também o desgaste de peças móveis, no caso de trackers, e placas eletrônicas de comando que são cruciais para o sistema “seguir” o sol durante o dia, bem como reposição de itens-chave sem os quais o sistema pode parar de gerar energia térmica.
Dessa forma, tudo deve ser relativizado e analisado tecnicamente, uma vez que mesmo uma tecnologia capaz de gerar temperaturas acima de 200°C pode ser a mais indicada para um determinado processo que necessita de temperaturas abaixo de 100°C. Novamente, além destes exemplos citados, vários fatores irão contribuir para a análise de viabilidade técnica, tecnológica e financeira do projeto.
Benefícios
Existem uma série de benefícios de curto e longo prazo relacionados à utilização do SHIP em indústrias que utilizam combustíveis fósseis na geração de calor. Esta tecnologia não é pensada para suprir 100% do calor de processo numa planta industrial. Chama-se “fração solar”, a parcela de energia térmica gerada pelo campo solar em relação à toda energia térmica gerada pelos boilers.
Como tudo, o investimento a ser feito num campo solar, por m², tende a ser menor quanto maior for o campo, ou seja, quanto maior for a fração solar contratada.
Em linhas gerais, uma fração solar de 20% pode reduzir uma quantia análoga de combustível queimado no boiler. Se a indústria queima 300.000 kg de óleo BPF/mês em seus boilers, estamos falando numa redução de 720.000 kg/ano de combustível.
Muitas vezes, dependendo da irradiação solar e das temperaturas de trabalho, a indústria não precisa deslocar caixa para pagar o financiamento do campo solar: a própria economia gerada é capaz de pagar o financiamento e ainda deixar uma sobra de caixa.
Essa fração solar contratada “blindará” a indústria por pelo menos 20 anos contra a incidência dos aumentos nos preços do óleo. Isso significa que o planejamento estratégico da empresa poderá “congelar” o valor do kWh-térmico gerado por essa fração por duas décadas, reduzindo o impacto dos aumentos de custo sobre os produtos finais. Como efeito direto, essa redução de impactos aumenta a competitividade da indústria no setor.
Outros benefícios, são:
• Redução do custo do kWh-térmico, podendo chegar a até 71% de economia.
• Reconhecimento social pela adoção de tecnologias limpas na indústria.
• Possibilidade de gerar receitas com créditos de carbono.
• Habilitação para participar de programas de incentivo para redução de emissões, na esfera municipal ou estadual (ex: Desenvolve São Paulo).
• Aumento da vida útil dos boilers.
• Redução de gastos com manutenção dos boilers.
• Aumento dos índices de sustentabilidade, aplicáveis ao DJSI (Dow Jones Sustainability Index).
• Reconhecimento nacional e internacional por sua atitude ambiental responsável.
Condições para Viabilidade
Como já foi abordado anteriormente, existem uma série de variáveis que precisam ser quantificadas e analisadas para a determinação da viabilidade econômica de um projeto SHIP para indústrias. Em linhas gerais, se a indústria produz calor até 200°C utilizando combustíveis fósseis, há viabilidade. Mas a viabilidade é subjetiva. Para algumas empresas, viabilidade significa um retorno do investimento inferior a 2 anos, para outras, 10 anos é aceitável. Uma mudança de pensamento é necessária, já que o projeto é para gerar energia, como se fosse o investimento numa “fábrica de óleo” capaz de produzir óleo durante 20 anos, mas sem sujeira.
Em ordem de importância, listo abaixo as principais variáveis utilizadas numa pré-análise de viabilidade para SHIP:
I) Combustível utilizado para os boilers e preço (Eletricidade, GLP, Diesel, Óleos Combustíveis, Gás Natural)
II) Área para instalação
III) Irradiação solar local
IV) Período de funcionamento, respectivas vazões e temperaturas e vazão do fluido usado para processo industrial (ar ou água), incluindo do condensado
V) Pressão do processo
VI) Eficiência do Boiler
VII) Taxas de financiamento e prazo de carência (se existir)
VIII) Disposição e/ou previsão orçamentária para investimento em ações de sustentabilidade/redução de emissões
IX) Existência de incentivos locais para iniciativas que reduzam a emissão de gases
X) Necessidade e reduzir emissões por questões ambientais e sociais
Abaixo segue um exemplo típico do resultado positivo de uma pré-análise, que resultou numa viabilidade absoluta do projeto – a economia gerada paga o financiamento típico usando linhas públicas, como o FCO ou Desenvolve SP, por exemplo – considerando um fluxo de caixa anual.
O exemplo acima usa números reais, resultados de simulações utilizando dados do Meteonorm e o software TRNSYS para compor os dados técnicos e financeiros fornecidos. Os dados de irradiação solar da região são: GHI : 2007 kWh/m2 por ano; DNI: 1914 kWh/m2 por ano; DIF 731 kWh/m2 por ano, onde GHI: Irradiação Horizontal Total; DNI: Irradiação Normal Direta e DIF: Irradiação Difusa. Foram adotados dados mais conservadores em todas as variáveis.
A empresa utiliza GLP em seu boiler e funciona 24h/dia, 6 dias por semana, considerando uma variação de produção de até 20% ao longo das 24h de funcionamento.
Adotamos como fonte de financiamento o FCO, com prazo de 120 meses e juros de 6,8% aa, em duas situações, com prazos de carência de 12 e 24 meses, período em que são pagos apenas os juros das parcelas do financiamento.
Foi considerado uma cotação BRL/USD de 3,35. O prazo estimado desde a assinatura do contrato até o comissionamento está entre 3 e 5 meses. O balanço é feito anualmente, para facilitar a visualização do fluxo de caixa.
Foi considerada uma taxa de reajuste anual do combustível de 6% (nos últimos 12meses, o aumento acumulado chegou a quase 18%) e consideramos uma aplicação do saldo positivo anual a uma taxa de 8% aa.
A primeira coluna consiste na economia gerada pela fração solar adotada (15% do calor gerado para o processo). Neste primeiro ano, a empresa economizaria, com a adoção do campo solar para SHIP, R$ 418.870,00. A diferença entre o valor economizado e as parcelas do financiamento, ao término do ano, será de R$ 294.870,04. No segundo ano, no cenário com 2 anos de carência, o valor economizado chegou a R$ 444.002,20 (GLP com reajuste de 6% aa), e descontando-se as parcelas, a empresa terá um saldo líquido acumulado de R$ 638.461,88 (saldo líquido do 1°ano submetido à aplicação de 8%aa somados ao saldo líquido do 2° ano).
Por esta análise, percebe-se que neste caso a própria economia gerada paga o financiamento.
Em cenários onde o custo do combustível é muito baixo e a irradiação solar é muito baixa, aliado a ausência de crédito barato, o resultado dessa pré-análise será certamente diferente, com um fluxo de caixa anual negativo nos primeiros anos.
Riscos
Uma das características extremamente positivas de se investir em SHIP é que a conta é simples. Não depende de incentivos públicos, isenções tributárias, boa vontade das Secretarias de Fazenda, resoluções de agências reguladoras, etc. Uma vez feita a análise de viabilidade, a economia é resultante simplesmente por comprar e queimar menos combustíveis fósseis.
É possível saber o custo daquela fração de energia térmica gerada pelo campo solar pelos próximos 20 anos. Diferente da geração fotovoltaica, onde as resoluções, incentivos, regras tarifárias, são passíveis de alterações a qualquer momento.

Então não há riscos?
Sim, claro! Mais os riscos são devido às análises de viabilidade e projetos técnicos falhos, utilizando tecnologias não tão robustas e sem um plano de monitoramento, operação e manutenção eficazes. Ou seja, são riscos de engenharia como há em qualquer outro projeto, que podem ser mitigados contratando-se empresas com experiência, suporte local e internacional, e reconhecidas por entidades internacionais.
Texto: Lester Izaac
Lester Izaac é Engenheiro Mecânico, pós-graduado em Negociação (EUA) e Estudos de Viabilidade para tecnologias limpas (Canadá). Participa desde 2008 de projetos em diversos países, com foco em tecnologias solares voltadas para produção de energia elétrica e térmica, incluindo Solar Air Conditioning. Com outros 18 anos de experiência em O&M de sistemas de ar condicionado de grande volume (HVAC), é diretor de tecnologia (CTO) da Solexor Tecnologias Solares, que propõe uma abordagem tropicalizada de usinas solares e térmicas, focada na viabilidade técnico-econômica e na redução da dependência e uso dos combustíveis fósseis em processos industriais. Contato: [email protected]