Saneamento – Plano setorial enfrenta corte de verbas e baixa participação efetiva dos municípios
Quando anunciado, no apagar das luzes de 2013, o Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) veio envolto em números grandiosos, projetando, entre 2014 e 2033, R$ 508 bilhões aplicados em quase seiscentos projetos de saneamento. Cerca de 60% desse total, ou exatamente R$ 304,8 bilhões, em projetos de tratamento de esgotos e abastecimento de água (o restante, em ações de manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais). Como objetivos, o plano relacionou a obtenção, nesse período, de 99% de cobertura no abastecimento de água potável (100%, nas áreas urbanas) e 92% no esgotamento sanitário (93%, idem).
Na ocasião desse anúncio, a União se apresentou como possível provedora de 59% do total dos recursos: os restantes 41% caberiam aos governos estaduais e municipais, prestadores de serviços de saneamento, iniciativa privada e organismos internacionais. E, com esse plano, o governo federal enfatizava a inclusão do saneamento entre suas prioridades, já expressa nas duas versões do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
O ano passado – o primeiro no cronograma de implementação do Plansab – teve a realização de eleições majoritárias e a economia nacional já mostrava sinais de fadiga. Agora, a conjuntura econômica se agravou, o governo reduziu o repasse de verbas e passou a conviver com escândalos e processos judiciais que comprometem grandes empreiteiras, várias delas com marcante atuação nesse setor. Não é difícil imaginar que esse programa tenha avançado muito pouco e esteja até mais contido o ritmo dos investimentos nacionais em saneamento.
O próprio Plansab, especificamente, até agora não gerou praticamente nenhum resultado concreto, avalia Dante Pauli, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental). Existe, ele relata, um grupo composto por governo e entidades – como a própria Abes–, já estruturado para elaborar esse plano, e existe “gente competente” nos atuais quadros da área de saneamento do Ministério das Cidades (principal provedor dos recursos para saneamento do governo federal). “Mas o plano ainda não produziu praticamente nada, e creio que ao menos nos próximos dois anos nada será feito”, afirma Pauli.
Gilson Cassini, presidente do Sindesam (Sistema Nacional das Indústrias para Saneamento Básico e Ambiental, ligado à Abimaq), também não notou nenhuma evolução nos investimentos em projetos de saneamento em decorrência do Plansab. “Este ano, se houve algum investimento, ele foi imperceptível”, ressalta Cassini.
Mas mesmo havendo verbas, pondera o presidente do Sindesam, vários obstáculos dificultam a implementação desse plano. Um deles: por ser o saneamento básico uma atividade atribuída à esfera municipal, torna-se muito pulverizado e também mais complexo e mais moroso o processo de definição de projetos e de distribuição das verbas a eles destinadas. Muitos municípios, ele destaca, não têm sequer know how para elaborar um PMSB (Plano Municipal de Saneamento Básico), que logo deve ser obrigatório nos municípios interessados em verbas federais para projetos de saneamento (e na realidade já considerado no processo de liberação desses recursos).
Some-se a isso, complementa Cassini, fatores como a complexa conjuntura econômica e política atual, e as sempre lembradas dificuldades há tempos enfrentadas pela indústria nacional. Resultado: os fabricantes de máquinas para saneamento aqui instalados, que hoje empregam cerca de 10 mil pessoas, já começam a reduzir suas equipes. Tal quadro pode até se agravar, pois, ao menos no curto prazo, as perspectivas não são nada favoráveis: “Em 2015, esse segmento da indústria talvez consiga um resultado de negócios equivalente a apenas 50% do total de 2014, que não foi um ano muito bom”, projeta Cassini.
Necessidades e realidade – As informações constantes da apresentação feita em maio, sobre os primeiros quatro meses deste ano, indicam que o Ministério das Cidades efetivamente destinou cerca de R$ 2,2 bilhões ao saneamento. Isso equivale a 42% do total alocado durante todo o ano passado nessa mesma rubrica de ‘investimento executado’. Além disso, informa o mesmo ministério, foram finalizadas mais algumas obras de saneamento.
Um aprofundamento nas informações relativas a esse investimento revela, porém, uma realidade mais difícil. Mostra, por exemplo, que os investimentos contratados no primeiro terço deste ano equivalem a apenas 5% do montante total de 2014, e nos ‘investimentos selecionados’ para receberem recursos a relação, considerando-se os mesmos períodos, é de pouco mais de 23% (ver Tabelas 1 a 3, com a evolução dos investimentos do governo no setor e com a relação de algumas obras recentemente finalizadas).
Na realidade, observa Cassini, do Sindesam, grande parte do valor apresentado pelo Ministério das Cidades como investimento executado no decorrer deste ano provavelmente se refere aos restos a pagar de obras já feitas. “Considerando que os valores executados são três vezes e meia superiores aos valores contratados, o governo está saldando compromissos anteriores, sem ativar novos contratos; isso indica claramente que, se depender de recursos públicos, o horizonte é catastrófico para a cadeia de saneamento no Brasil”, ressalta. “Mesmo entre as obras inauguradas mais recentemente, muitas foram contratadas há vários anos, algumas delas podem ser encontradas na primeira edição do PAC”, acrescenta.

Menos contundente, Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil, observa que, se no decorrer deste ano os investimento estão mais contidos, não é correto dizer que, ao menos a partir de 2007 – quando foi editada a Lei de Diretrizes Nacionais do Saneamento Básico –, o Brasil não tenha destinado recursos para o saneamento; apenas no ano passado, ele estima, esses recursos somaram cerca de R$ 10,5 bilhões (valor similar ao alocado em 2013).
Não é, reconhece Carlos, o montante desejável, pois o próprio Plansab fala em algo entre R$ 15 bilhões e R$ 16 bilhões por ano para abastecimento de água e tratamento de esgotos. “Mas também não dá para se dizer que não venha havendo recursos”, afirma o dirigente do Trata Brasil (entidade criada e mantida por empresas, como indústrias químicas e concessionárias privadas de saneamento, e instituições interessadas na ampliação do acesso ao saneamento básico no Brasil).
Mas existem gargalos no processo de aplicação dessas verbas. Caso, por exemplo, da existência de muitos municípios que ainda não elaboraram seu PMSB. Carência, aliás, não restrita apenas ao universo das pequenas localidades, pois uma pesquisa realizada em meados do ano passado pelo próprio Trata Brasil mostrou que 34% entre as cem maiores cidades do país ainda não tinham esse plano pronto.
Além disso, a liberação das verbas é extremamente lenta. “Fizemos um levantamento e constatamos que entre a apresentação de um projeto no ministério e a liberação dos recursos, são necessários, em média, 23 meses”, conta Carlos.
Recursos privados – Ao menos momentaneamente, o envolvimento de grandes empreiteiras em rumorosos processos criminais parece comprometer ainda mais o investimento total em projetos de saneamento. Afinal, muitas delas têm interesse nesse setor não apenas como possíveis executoras das obras, mas também como detentoras, participantes e disputantes de concessões ou de PPPs (Parcerias Público-Privadas), dedicadas essa atividade. São os casos, por exemplo, de Odebrecht, OAS, Galvão e Carioca Engenharia.

Mas as dificuldades de alguns às vezes geram oportunidades para outros, e a fragilização das megaempreiteiras pode abrir espaço para novos investidores. Algo, aliás, possivelmente prestes a acontecer: de acordo com Giuliano Dragone, presidente do Sindcon (Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), grandes grupos internacionais – estimulados também pela alta do dólar frente ao real –, voltam a considerar o mercado nacional do saneamento, no qual projetam entrar seja comprando ativos dos quais empreiteiras começam a se desfazer, seja disputando novas concessões.
Entre esses grupos, Dragone cita o franco-belga Suez, que no passado atuou no Brasil, o francês Veolia, e o espanhol Canal de Isabel II. Os controladores do grupo nacional JBS estruturaram uma empresa – a Zetta –, para disputar o mercado nacional de saneamento, no qual também devem agora aparecer investidores de menor porte associados a fundos de investimento. “Não há como não aumentar a presença do capital privado, pois existe um déficit muito grande em saneamento e há uma intensa pressão de cunho ambiental”, argumenta o presidente do Sindcon.
Mas ele também reconhece ser impensável ampliar a penetração do saneamento sem a participação do setor público, como comprovou estudo recentemente desenvolvido para a cidade de Belém-PA, no qual ficou evidente que um projeto de saneamento desenvolvido apenas pela iniciativa privada exigiria cobrar tarifas socialmente inviáveis. “Cidades onde são grandes os déficits no saneamento, caso de Belém, exigem a participação de recursos públicos”, observa Dragone.
A crise hídrica alavancou ainda mais o interesse pelo tema e as companhias estaduais de saneamento começam a pensar em formar as até agora inéditas PPPs para redução e gestão de perdas. Assim, apesar da redução dos investimentos públicos neste ano, segue crescendo o interesse do capital privado pelo saneamento (ver Tabela 4).
Exemplo de companhia privada interessada em ampliar sua atuação nesse mercado é a Aegea, cujas concessões já atendem 3,6 milhões de pessoas em 38 municípios de oito estados: o trigésimo oitavo município passou a fazer parte desse grupo no início deste ano, quando a empresa assumiu a concessão dos serviços de água e esgoto da cidade maranhense de Timon. “E estamos participando de concorrências para quatro outras concessões: Pimenta Bueno-RO; Penha e Camboriú-SC; e Holambra-SP”, relata Yaroslav Memrava Neto, líder da área de relações com investidores da Aegea.
Ele considera o Plansab interessante, por constituir um referencial mercadológico para o setor, mas qualifica seus objetivos como sendo “modestos” em relação à realidade brasileira. “Universalizar o acesso ao saneamento apenas em 2033 é algo pouco condizente com um país cuja economia está entre as dez maiores do mundo”, critica Memrava Neto. “E ainda nem estamos vendo aumento nos investimentos compatíveis com os objetivos propostos nesse plano”, acrescenta.
Implementar e redesenhar – Solicitado a falar sobre a evolução do Plansab, o Ministério das Cidades enviou algumas informações por e-mail. Nelas, afirma não poder ainda detalhar os avanços desse plano porque a primeira de suas obrigatórias avaliações anuais está ainda sendo feita. “Entretanto, com o que se observa até o momento é possível projetar evolução adequada do Plansab, na medida em que muitos obstáculos inerentes a empreendimentos desta natureza – complexos e de grande porte – vão sendo superados”.
Nesses primeiros dezoitos meses de implantação do plano, prossegue o e-mail, o governo “está trabalhando para adequar os seus programas e projetos existentes a esse novo planejamento setorial, e delinear suas novas ações conforme o que está previsto no Plansab”. O Ministério lembra ainda que um grupo interministerial composto por órgãos governamentais das várias esferas administrativas e por instituições e entidades do setor – o GTI-Plansab – já se reúne periodicamente para aprofundar e monitorar esse plano, que deverá também ser abordado na edição 2016-2019 do Plano Plurianual, na qual o governo ainda este ano deve apresentar suas prioridades para o próximo quinquênio.
Mas, embora já sendo preparado até para se integrar a outros planos federais, o Plansab, ressaltam os representantes de empresas e entidades do setor, por enquanto é basicamente um conjunto de intenções, metas e objetivos, com um mapeamento dos recursos capazes de permitir que eles sejam atingidos. Transformá-lo em um roteiro mais preciso de ações é uma das prioridades de Cassini, do Sindesam. “Queremos que se diga, por exemplo, quantos dos bilhões nele anunciados virão nos próximos cinco anos, para onde eles irão, quais serão as fontes desses recursos”, enfatiza. “Há hoje no Brasil uma intensa cultura de anúncios públicos, que precisamos começar a executar.”
Por sua vez, Pauli, da Abes, vê a necessidade de nova estruturação para a gestão do saneamento no Brasil. Ele observa que, diferentemente do que acontece no setor da energia elétrica no qual instituições como Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) trabalham na gestão das questões regulatórias e operacionais, no saneamento a pulverização da administração em estados e municípios – no caso de regiões metropolitanas – dificulta a implementação de projetos mais significativos. “A Abes pretende trabalhar para elaborar um novo desenho para o sistema brasileiro de saneamento”, informa.
Com ou sem esse novo desenho, seria importante ao menos maior rigor na exigência dos PMSB, ressalta Dragone, do Sindcon (após alguns adiamentos, a data máxima para os municípios interessados em obter verbas nessa área apresentarem esse plano está agora fixada em 31 de dezembro de 2015). Aliás, além de maior quantidade de PMSB, é necessário também que esses planos sejam estruturados de maneira cuidadosa. “Muitos estão sendo feitos apenas para cumprir a legislação, sem nenhum aprofundamento, e há planos feitos há apenas dois anos que já estão precisando ser revistos”, comenta Dragone.