Olá, leitoras e leitores. Espero que vocês e suas famílias estejam conseguindo enfrentar bem as restrições impostas pela Covid-19, ainda necessárias.
Abaixo menciono ou discuto alguns artigos publicados recentemente, e que conversam com as minhas angústias e obsessões, e tento alinhavar uma linha de raciocínio e alguma conclusão.
Artigo de 18 de agosto de Denise Luna n’O Estado de São Paulo, “Especialistas criticam ‘timidez’ do projeto da Lei do Gás”. Os especialistas consultados informam que: 1. A produção de gás do pré-sal vai dobrar em 10 anos; 2. O Brasil hoje já reinjeta 40% do gás que produz (pode chegar a 60% em 2023); 3.
Mesmo após a pandemia, será difícil atrair os investimentos necessários para aproveitarmos o gás natural que produzimos e produziremos – sugerem a construção de termoelétricas ao longo dos gasodutos.
Já no dia 2 de setembro, um dia depois da aprovação na Câmara dos Deputados da Lei do Gás, em entrevista à Fernanda Nunes no mesmo O Estado de São Paulo, Luiz Costamilan, secretário-executivo de Gás Natural do Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás (IBP), disse que “Se a gente considerar os campos que já têm decisão de investimento tomada, a infraestrutura que tem disponível é suficiente para que o gás seja escoado” (acho que esta é uma divergência importante entre os especialistas) e que “até 2025 ou 2026, o que tem de capacidade instalada atende às disponibilidades de produção dos campos existentes. O que tem que ter é a identificação de demandas âncoras”.
Segundo ele, tais demandas âncoras seriam indústrias com consumo contínuo de gás, como projetos gás-químicos, de siderurgia, fertilizantes nitrogenados, cerâmica etc. Contudo, Luiz Costamilan ressalta que ainda faltam a aprovação no Senado e a sanção presidencial. Ele acha que a tramitação no Senado poderia ocorrer ainda este ano, em dezembro, depois das eleições municipais. Eu invejo o otimismo dele.
Ainda, sobre a Lei do Gás (PL 6.407) cuja recém aprovação na Câmara dos Deputados foi comemorada pela indústria química, pode haver entraves legais em outros projetos de lei também em tramitação.
Por exemplo, o PLS 232 do setor elétrico não conversa com o PL 6.407 do gás, por não criar as condições ótimas para o despacho das térmicas a gás. Como 80% do gás do pré-sal está associado ao petróleo, se não houver demanda garantida ao gás, haverá um sinal econômico para reinjetar o gás (Adriano Pires, 2020).
Recentemente, a Confederação Nacional da Indústria CNI lançou o documento “Bioeconomia e a Indústria Brasileira”, de Gonçalo Pereira. Recomendo a leitura do texto, no qual o autor consolida muita informação de interesse do profissional de química. Gonçalo Pereira advoga que:
André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP
“Temos, agora, uma oportunidade de reindustrializar o País a partir de novas premissas e de uma série de vantagens comparativas:
temos um enorme território com terras férteis, água e alta insolação;
além da maior biodiversidade do planeta, onde podemos encontrar as soluções da natureza para praticamente todas as reações químicas e bioquímicas a serem aplicadas na indústria;
temos uma frota de veículos movida em grande parte por biocombustíveis, o que gerou o desenvolvimento de uma cadeia de inovação completa e que pode ser replicada;
temos uma infraestrutura razoável e que pode ser expandida por todo o País de modo a diversificar e descentralizar a nossa indústria; temos hoje marcos regulatórios para lidar com Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conservação da Natureza;
e temos um enorme conhecimento e capacitação dentro dos nossos ICTs (Institutos de Ciência, Tecnologia e Inovação), que hoje estão preparados para interagir com o setor produtivo e gerar inovações.”
Entre os potenciais da Bioeconomia no Brasil, o autor destaca a biorrefinaria baseada na cana-de-açúcar, lembrando que os atuais sete produtos da cadeia produtiva da cana – açúcar, etanol, rum, cachaça, pellets, eletricidade e biogás – poderiam chegar a outros onze – bioplásticos, corantes, ácidos orgânicos, aminoácidos, lubrificantes, fármacos, enzimas, fragrâncias, cosméticos, detergentes e solventes – com investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. A base florestal plantada que atualmente gera celulose, papel, pisos, painéis, carvão vegetal, pellets e eletricidade poderia ser fonte também de outros produtos como lignina, etanol celulósico, bioplásticos, nanofibras, tall oil e bio-óleo.
Artigo de Tommy Isaac para a The Chemical Engineer faz para o Reino Unido e a nascente indústria do hidrogênio colocações similares às de Gonçalo Pereira para o Brasil e a Bioeconomia.
Em seu artigo, Isaac lembra que a crescente pressão social sobre os governos para descarbonizar a economia mundial está fazendo com que o hidrogênio seja visto como uma tecnologia cada vez mais dominante no futuro cenário de energia.
O hidrogênio e seu uso em um sistema de energia líquida-zero – sistema no qual a energia obtida é maior ou igual do que a energia empregada para obter – está ganhando cada vez mais atenção internacional, com sucessivos governos e institutos políticos delineando suas estratégias de hidrogênio.
No Acordo Verde, recentemente publicado pela União Europeia, o hidrogênio foi descrito como uma “área prioritária para uma economia limpa e circular”. Portanto, a criticidade dessa tecnologia para o fornecimento de energia em uma economia circular deve ser percebida imediatamente e vista pelo que é: uma tecnologia em expansão com oportunidades de exportação internacional significativas.
Embora a indústria global de hidrogênio de baixo carbono ainda esteja em sua infância, o Reino Unido tem uma posição de liderança. As duas principais tecnologias de produção de hidrogênio: a reforma do vapor de gás natural com captura e armazenamento de carbono (hidrogênio “azul”) e eletrólise (hidrogênio “verde”) estão sendo desenvolvidas em ritmo acelerado no Reino Unido.
O autor compara a situação da nascente indústria do hidrogênio com o recente imbróglio do Reino Unido com a tecnologia 5G, quando pressionado por EUA e China, o governo britânico decidiu não utilizar tecnologia desenvolvida pela Huawei. Segundo Tommy Isaac o problema ocorreu porque o Reino Unido está fora do desenvolvimento da tecnologia 5G. Para ele, a falta de uma fonte doméstica de tecnologia crítica competitiva cria uma relação difícil entre o avanço tecnológico e a segurança nacional.
Portanto, sem fontes domésticas de tecnologia competitiva em infraestrutura crítica, o Reino Unido estará destinado a repetir aquele imbróglio e, em última instância, terá que comprometer os interesses de segurança nacional ou aceitar um atraso cada vez maior na adoção tecnológica. Sua opinião é de que o crescimento econômico e o posicionamento geopolítico no século 21 serão uma função do aproveitamento dos avanços tecnológicos.
Na minha humilde opinião, todos esses artigos e notícias conversam entre si, e apontam cenários para o Brasil. Não haverá desenvolvimento econômico sem desenvolvimento tecnológico e este é muito facilitado por uma base educacional forte. Estamos décadas atrasados neste ponto e correndo na direção errada, tá oquei? Contudo, as nossas características geográficas podem nos oferecer algumas oportunidades.
Nossas reservas de gás natural podem permitir que a indústria química tradicional do Brasil opere com custos competitivos, de modo a gerar divisas e empregos qualificados. Mas me refiro aqui à indústria tradicional – fertilizantes, intermediários químicos e polímeros produzidos a partir de rotas químicas consolidadas. É bem provável que a sociedade passe a exigir cada vez mais rotas verdes, sustentáveis, para a indústria química. E nesse caso, como pontuou Gonçalo Pereira, a Bioeconomia oferece ao Brasil a oportunidade de se reindustrializar segundo as novas premissas requeridas.
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Contudo, para que essa reindustrialização em bases modernas possa se tornar realidade, um esforço conjunto de vários agentes da sociedade – governo, indústrias, universidades, instituto de pesquisa – é necessário. Algumas ações possíveis seriam:
– Formação de hubs de inovação que integrem esses agentes fazendo pesquisa dirigida e formando mão-de-obra capacitada.
– Mecanismos específicos de financiamento que levem em conta o tamanho das empresas e que tenha garantias, carência, prazos de pagamento e juros customizados.
– Consórcios de diferentes empresas ou entre empresas e governo para realização de projetos em áreas de fronteira tecnológica.
– Apoio financeiro a pesquisa em diferentes estágios de desenvolvimento de novos bens e serviços baseados em recursos naturais.
– Atração de fundos estrangeiros pela garantia de segurança jurídica.
Referências
Adriano Pires. As reformas no setor de energia. O Estado de S.Paulo, 22 de agosto de 2020. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,as-reformas-no-setor-de-energia,70003408579
Gonçalo Pereira. Bioeconomia e a Indústria Brasileira / Confederação Nacional da Indústria, – Brasília: CNI, 2020. Disponível em: http://www.portaldaindustria.com.br/publicacoes/2020/8/bioeconomia-e-industria-brasileira/
Tommy Isaac, Hydrogen Lessons from Huawei: Unlocking UK Growth, The Chemical Engineer, publicado em 02 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.thechemicalengineer.com/features/hydrogen-lessons-from-huawei-unlocking-uk-growth/
Fernanda Nunes, O Estado de S.Paulo 02 de setembro de 2020, Entrevista com Luiz Costamilan, secretário-executivo de Gás Natural do Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás, disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-brasil-tem-infraestrutura-para-escoar-gas-do-pre-sal-ate-2026-diz-representante-de-petroliferas,70003423466
Denise Luna, O Estado de S. Paulo, 18 Aug 2020, Especialistas criticam ‘timidez’ do projeto da Lei do Gás.
André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP, com mestrado em Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos pela Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e doutorado em Engenharia Química pela UFSCar. Trabalhou no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e em diferentes indústrias químicas. Atualmente é professor do Departamento de Engenharia Química da UFSCar. E-mail de contato: [email protected]
ABEQ
A Associação Brasileira de Engenharia Química (ABEQ) é uma entidade sem fins lucrativos que congrega profissionais e empresas interessadas no desenvolvimento da Engenharia Química no Brasil.
É filiada à Confederação Interamericana de Engenharia Química. Seu Conselho Superior, Diretoria e Diretoria das Seções Regionais são eleitos pelos associados a cada dois anos.