Química fina – Sem planejamento de longo prazo, avanço do segmento segue lento e disputa espaço com importados

“As coisas foram tão ruins em 2014, que não devem piorar mais.” O desabafo é do 1º vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Nélson Brasil de Oliveira, um crítico feroz das facilidades para a importação e da falta de uma política industrial de longo prazo no país. “De modo geral, a indústria total passa por um período muito ruim”, contextualiza, lembrando que há cerca de 10 anos, o setor secundário representava 25% do PIB nacional e hoje não vai além de 13%. O segmento da química equivale a 3% do PIB – faturou US$ 160 bilhões no ano.
Os setores de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos respondem por 15% da indústria química e estão aparentemente imunes à crise. “Esse tipo de produto mexe com a vaidade das pessoas e parece ser a última coisa que o consumidor vai abandonar”, observa Oliveira. A área farmacêutica (28% aproximadamente do faturamento setorial) apresenta um comportamento razoável para bom porque, na opinião do executivo, envolve produtos voltados para a saúde pública e não há séria competição com os importados. “O marco regulatório sanitário é forte. Os produtos têm que ser registrados e fiscalizados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)”, explica.

O 2º vice-presidente da Abifina, Reinaldo Guimarães, salienta que as indústrias farmacêuticas e farmoquímicas têm sido “um ponto fora da curva” no cenário geral, por conta do maior acesso a esses medicamentos, que decorre dos programas sociais, aumento do salário mínimo e do sucesso da política de genéricos. “Essa situação de conforto é maior ainda na área farmacêutica”, acrescenta. O desconforto está na “imensa produção” de princípios ativos na China e na Índia, que gera um grande volume de importação e não há muito como evita-lo: “Chegamos atrasados em relação àqueles países no campo das commodities farmacêuticas”, lamenta.
Oliveira classifica a produção nacional de princípios ativos como “ridícula”. As exceções são o Laboratório Cristália, que produz praticamente a metade dos princípios ativos que utiliza em seus produtos, e a Lipps, além de “duas ou três empresas que os fabricam para vender aos demais laboratórios”. Os demais, só importam. “Esse setor carece de verticalização. A estimativa é que apenas 5% dos princípios ativos consumidos por toda a indústria farmacêutica nacional e multinacional são produzidos aqui”, destaca. Em compensação, “avançou-se bastante nas parcerias público privadas (PPP) – Ministério da Saúde com empresas privadas – para a fabricação de princípios ativos para os medicamentos requeridos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”, ressalva Oliveira.
Guimarães destaca que a saída é a especialização na farmoquímica: “Percebe-se uma tendência de se fixar em nichos de maior complexidade em termos de moléculas ativas. Isso não se desenvolve sem dificuldade, mas há avanços.” No caso da indústria farmacêutica, o nicho dos genéricos e similares tem sido fundamental para o crescimento do setor. O radar das empresas já aponta, entretanto, para a perspectiva da inovação. É preciso ir além das cópias. “Já se nota aqui e ali algumas empresas voltadas para produtos inovadores”, testemunha.
O mais sofrido dos segmentos da química fina é o de defensivos agrícolas. “Sofre-se não só pelos problemas macroeconômicos, mas também pelo marco regulatório”, afirma Oliveira. Ele considera que há “um radicalismo ideológico” no tratamento desse assunto. A começar pela denominação agrotóxicos: “Se são produtos tóxicos, devem ser evitados!”. O dirigente da Abifina também considera que essa ideia radical “infelizmente é voltada, basicamente, para a indústria estabelecida no Brasil.” Esses são os fatos: “Os órgãos regulatórios são extremamente exigentes na fiscalização e na aprovação de um produto fabricado no Brasil. Mas, as importações são feitas à vontade”, critica.
O resultado desse descompasso é que “das dezenas de fábricas que existiam há 10 ou 15 anos, só restam duas empresas nacionais: a Nortox, do Paraná, e a Ouro Fino, de São Paulo. As demais foram desnacionalizadas. Deixaram de fabricar e passaram a importar. Só fazem o envase ou a dissolução aqui. Tínhamos grandes empresas em vários Estados e todas foram absorvidas por multinacionais – até mesmo por originárias de Israel e da China”, comenta. Oliveira sustenta que o país adota regras contrárias à produção local. E, por isso, é preferível exportar para o Brasil do que produzir aqui.
“Essa é uma triste realidade”, prossegue. “É a falência total das autoridades públicas no trato dos defensivos agrícolas.” As empresas desse setor também se queixam do sistema tarifário vigente: por um lado, o produto possui a mais baixa tarifa de importação dentro do Mercosul – paga-se 0 ou 2% para importar os produtos. Mas, para a obtenção de matérias-primas paga-se 10% ou 12%. A crença disseminada é que “não há uma política de Estado” para o setor.
“A química fina sofre desde os anos 1990”, recorda-se Oliveira. Nos anos 1980, ele conta, havia uma política industrial. Mas, com a abertura econômica abrupta e inepta do governo Collor (1990-92), cerca de 1.070 fábricas fecharam e cerca de 500 projetos em implantação foram encerrados. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o processo não foi revertido e se aprofundou a desindustrialização do Brasil. A partir do governo Lula (2003-2010), se elaborou um projeto de política industrial, aprovado em 2005, que teve alguns reflexos, especialmente na área de saúde pública, a partir de 2006.
No primeiro governo Dilma (2011-14), esperava-se que houvesse uma continuidade efetiva na política industrial, mas ela priorizou a área social. “Dilma lançou o Plano Brasil Maior, que ficou aquém das práticas requeridas pelo mercado”, completou. O que falta, na visão do dirigente da Abifina, “é um marco regulatório forte, inserido num planejamento de Estado de longo prazo, econômico e social. O Brasil carece desse planejamento. Só tivemos planejamento de fato com Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54), Juscelino Kubitschek (1956-61) e Ernesto Geisel (1974-79). Esses três presidentes pensaram em uma indústria para o desenvolvimento. O que precisamos é de um planejamento plurianual como têm a China, a Coréia do Sul e a Índia, com metas e acompanhamento, independentemente dos governantes de turno.
Estendendo o olhar para 2015, a Abifina espera que a soma da maturidade de governo da presidente Dilma Rousseff com os ajustes necessários na economia e mais a adoção de um planejamento adequado construam um mandato promissor. “Espero que aconteçam duas coisas fundamentais: o ministro da Fazenda (Joaquim Levy) se contente em administrar receitas e despesas e não entre na área de planejamento; e que o ministro do Planejamento (Nélson Barbosa) tenha metas firmes e execute um planejamento de longo prazo, de até 20 anos, para ser aprovado pelo Congresso Nacional”, sintetiza Oliveira. Algo mais? “E que daí surjam medidas para se trabalhar e crescer no país”.
Guimarães avalia que “ninguém está otimista” com relação a 2015, e esse pessimismo tem fundamento. Particularmente, ele não acha que o ano será uma catástrofe, mas as dificuldades estão à vista, principalmente por conta dos desafios econômicos e políticos, estes como desdobramento da crise que abala a Petrobras e as empreiteiras.
Inovação – Apesar da baixa tradição em novidades farmoquímicas, o setor tem o que comemorar. O Helleva é um exemplo de inovação. “Essa é a primeira molécula desenvolvida totalmente no Brasil. Além de ser uma afirmação da capacidade tecnológica dos pesquisadores brasileiros, foi o primeiro passo dado no caminho de adensar nossa tecnologia e aprofundar a qualificação científica no país”, afirma Ogari de Castro Pacheco, presidente e um dos fundadores do Laboratório Cristália, responsável pela criação do Helleva.

Segundo Pacheco, que também preside a Abifina, na medida em que se domina a técnica para sintetizar moléculas, fica mais fácil produzir medicamentos em outras áreas. “Agora estamos trabalhando em moléculas inéditas para tratar o câncer e a Aids. Na questão da Aids, no momento já estamos em fase de aprovação, mas a área do câncer não fica atrás. Isso tudo traz avanços do conhecimento na ciência e na química”, ressaltou.
Esta é a quarta molécula original desenvolvida no mundo para tratamento de disfunção erétil. No caso do Helleva, que está à venda no mercado brasileiro desde 2007, o produto acaba de receber autorização para ser comercializado no México. Atualmente, ele já está registrado no Equador e há pedido de registro na Venezuela. Para o desenvolvimento de Helleva foi preciso o apoio de 60 médicos e 17 centros de pesquisa. De acordo com o Laboratório, a disfunção erétil é uma doença que afeta cerca de 46% dos homens brasileiros de 40 a 70 anos.
O Cristália é um complexo industrial farmoquímico, farmacêutico e biotecnológico 100% brasileiro. Referência em inovação e tecnologia, com 75 patentes, é a farmacêutica brasileira pioneira em realizar a cadeia completa de um medicamento, desde a concepção da molécula até o produto final. Possui mais de 133 medicamentos em cerca de 340 diferentes formas de apresentação e dosagens, e está presente em mais de 95% dos hospitais brasileiros. O laboratório é responsável pela produção dos medicamentos antirretrovirais para o tratamento de HIV/Aids que são distribuídos pelo SUS.
Iniciada em 1983, a área farmoquímica do Laboratório Cristália é pioneira em solo nacional no segmento. É responsável pelo desenvolvimento e síntese dos IFAs (princípios ativos). Por conta de sua relevância estratégica para a companhia, ela se apresenta como uma área de destaque na cadeia de produção. Com 35 mil m² de área construída, equipamentos e maquinários modernos, alguns inéditos no Brasil, é responsável por cerca de 50% dos insumos necessários para a produção de medicamentos próprios, enquanto outros laboratórios importam mais de 90%. Fornece também para outros laboratórios nacionais e estrangeiros, exportando para países como Argentina, Egito, México e Reino Unido. Investindo em tecnologia, o Cristália produz cerca de 30 ativos farmoquímicos para fabricação de analgésicos, anestésicos, antipsicóticos, antirretrovirais e tratamento da disfunção erétil.
Atualmente, o Departamento de Exportações do Cristália comercializa produtos farmacêuticos terminados e matérias primas para mais de 30 países tendo como principais mercados a América Latina, a Ásia, a África e o Oriente Médio. As principais atuações estão nos segmentos de anestésicos e seus adjuvantes, analgésicos, produtos psiquiátricos e antirretrovirais. Como consequência da manutenção dos planos de investimentos, novas fábricas no padrão US-FDA (Food and Drug Administration) e EMEA (European Medicines Agency) estão sendo construídas, o que permitirá a atuação em novos mercados como Estados Unidos, Europa e Japão. Os principais produtos desenvolvidos e exportados são: Sevocris (anestésico), Fentanest (analgésico), Propovan (anestésico) e Dormire (sedativo). A empresa investe o equivalente a 6% de seu faturamento em PDI (pesquisa, desenvolvimento e inovação) – em 2013, faturou R$ 1,5 bilhão.
O Cristália também atua fortemente no setor de biotecnologia há mais de 15 anos. Em 2013, inaugurou planta exclusiva com 1,7 mil m², na cidade de Itapira-SP, um marco no setor para pesquisa e desenvolvimento de remédios biológicos. A nova unidade recebeu, em 2014, o CBPF (Certificado de Boas Práticas de Fabricação para os Insumos Farmacêuticos Biológicos), concedido pela Anvisa. Ainda em 2014, também recebeu o segundo CBPF para a planta de bactérias anaeróbicas, que produzirá o IFA Kollagenase, desenvolvido verticalmente pelo laboratório com pesquisa científica 100% brasileira. O Cristália é o primeiro e único (até o momento) laboratório nacional a receber a certificação. Essa planta produzirá a nova versão da pomada Kollagenase, utilizada para remover tecido necrosado.
Os pesquisadores do Cristália estão testando a partir da flora existente em Itapira o novo medicamento com IFA desenvolvido integralmente em solo brasileiro. O laboratório já comercializa a Kollagenase no Brasil e atende 50% do mercado interno, porém com princípio ativo importado. A empresa conta ainda com cinco medicamentos biológicos em fase de testes clínicos, para lançamento no mercado mundial. São eles: o anticorpo monoclonal trastuzumabe, para tratamento de câncer de mama; a proteína de fusão Etanercept, para tratamento de doenças autoimunes, como artrite reumatoide e psoríase; e somatropina, hormônio do crescimento humano recombinante.
Vital Brazil – No início de dezembro de 2014, o Instituto Vital Brazil, de Niterói (RJ), inaugurou uma nova e moderna área que contempla todas as etapas de produção do soro, o seu carro-chefe. Entre as vantagens do novo espaço, destacam-se o aumento da capacidade de produção de soros, a diminuição do risco de contaminação microbiana e a melhoria da eficiência na produção.
“O soro é feito em três grandes etapas: produção do plasma, produção do concentrado de imunoglobulina e envase de ampolas. A primeira parte é realizada na Fazenda Vital Brazil, na mais moderna central de produção de plasma do país, construída em 2010, e agora estamos em obra para adequar e unir as duas outras etapas para que o produto final seja ainda melhor”, declara o presidente do Instituto, Antônio Werneck. “Também podemos ressaltar que a nova área tem como objetivo a certificação das Boas Práticas de Fabricação”, completa.
O instituto é um laboratório oficial que fornece oito tipos diferentes de soros hiperimunes para o Ministério da Saúde, incluindo os antipeçonhentos, antitetânico e antirrábico. Apenas em 2013, 206 mil ampolas foram entregues aos pacientes do SUS, ajudando a salvar mais de 158 mil pessoas acidentadas, de acordo com os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Além da obra que vai melhorar todas as etapas da produção dos soros hiperimunes, o instituto também investiu na compra de equipamentos que aumentarão a produção em 50%.
Missão – Criada em junho de 1986, em São Paulo, quando a indústria da química fina ainda era incipiente, a Abifina participou da elaboração da Constituição de 1988, no capítulo de Ciência e Tecnologia, que definiu o mercado interno como patrimônio nacional a ser usado para o progresso do país. Nos anos seguintes, participou, em Genebra, das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). No início dos anos 1990, “trabalhou para evitar a quase extinção do setor farmoquímico”, apontando medidas para proteger a indústria nacional nas negociações de comércio exterior.
Também participou da aprovação da Lei de Propriedade Industrial brasileira e da criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), como porta-voz da Confederação Nacional da Indústria (CNI) para o tema de propriedade intelectual. Na década de 1990, a sua sede foi transferida para o Rio de Janeiro. No século XXI, passou a atuar nos fóruns de competitividade de cadeias produtivas, criados pelo Ministério do Desenvolvimento. Colaborou, assim, para a elaboração da Lei do Bem, que criou incentivos fiscais automáticos para empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento.
Contribuiu também para o estabelecimento do marco regulatório do setor farmoquímico-farmacêutico. Assim ajudou a criar e a fortalecer o complexo industrial da saúde, além da política das parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDPs). A Abifina considera que a sua trajetória tem sido pautada pelas articulações com o governo, “o que lhe permite negociar posições do setor que estejam alinhadas aos interesses nacionais”.
A Abifina representa os seguintes segmentos da química fina: medicamentos (uso humano e animal) sintéticos, biotecnológicos e fitoterápicos (e fitocosméticos); catalisadores; corantes e pigmentos; aditivos; aromas e fragrâncias; defensivos agrícolas; e vacinas (uso humano e animal).