O Brasil importa três principais ingredientes anti-aids

País importa umas 21 t/ano dos três principais ingredientes do coquetel anti-aids
Uma Política de Eutanásia – O programa brasileiro de combate à aids, iniciado em 1992, é considerado um modelo de gênero, tendo merecido inclusive um artigo (um tanto condescendente) de dez páginas na revista dominical do New York Times.
Só no terceiro mundo, existem hoje uns 30-35 milhões de infectados, dos quais 300 mil no Brasil; destes últimos, um terço estão sendo tratados a um custo unitário de US$ 3.000 por ano, num total de US$ 300 milhões anuais. A preços de primeiro mundo esse total seria três a cinco vezes maior, e é essa redução de custos que o Ministério da Saúde reivindica para si como seu grande sucesso nesse combate.
Infelizmente, essa redução de custos foi acompanhada de uma perfeitamente evitável política de desincentivo da química fina brasileira, que desde 1992 vinha se firmando no setor da síntese dos nucleosídeos, a família de compostos à qual pertencem os antivirais que constituem o coquetel antiaids.
De uns quatro anos para cá, mudou o mecanismo para a produção dos remédios distribuídos pelo Ministério da Saúde.
Antes compravam-se no Brasil aqueles princípios ativos que eram produzidos internamente, a preços próximos dos internacionais (internados). Hoje, essas moléculas são adquiridas em regime de concorrência pública (principalmente da Índia) e, em seguida, confiados a laboratórios oficiais, como Far-Manguinhos (RJ), Furp (SP), Lafepe (PE) e outros que executam as operações industrialmente banais, porém muito bem remuneradas, de sua transformação em comprimidos ou cápsulas.
A indústria de princípios ativos da Índia apresentou nesses últimos 20 anos um crescimento extraordinário, que teve a seu favor uma atitude positiva por parte do aparelho burocrático (por exemplo, drawback automático para as matérias-primas importadas – a Índia, como foi o caso da Itália do imediato pós-guerra, especializou-se na ponta dos princípios ativos e importa boa parte de seus intermediários), e a conhecida inventividade em matéria de práticas comerciais das suas numerosas tradings. Sem esquecer a oferta abundante de Ph.Ds em Química. Não seria surpresa, aliás, que a próxima etapa venha a ser a aquisição, na Índia ou na China, de alguns desses remédios já formulados, “baipassando” portanto os laboratórios oficiais.
O Brasil importa umas 21 t/ano dos três principais ingredientes do coquetel anti-aids – (zidovudina, lamivudina, stavudina) – produtos que custam US$ 750 a US$ 1.500/kg no mercado internacional.
O principal, a zidovudina, é feito em cinco etapas difíceis, a partir da timidina (v. figura), a um custo de passagem de uns US$ 400/kg. A timidina, por sua vez, é produzida principalmente por um fabricante coreano (Samchully), numa escala de 150 t/ano, o que, a uns US$ 300-350/kg, faz desse intermediário um peso pesado da química fina mundial.
A stavudina (mercado mundial de umas 25t/ano) também é produzida a partir da timidina. Quanto ao terceiro ingrediente, a lamivudina (cerca de 60t/ano no mundo), é fabricado partindo de matérias-primas muito mais baratas – glioxilato de l-mentila, 2,5-ditianatiol, citosina –, mas dado o número de etapas e o consumo de solventes, o produto final sai por mais de US$ 1.000/kg.
Além desses três, o arsenal de inibidores de transcriptase reversa consiste de umas dez moléculas bem mais caras, a grande maioria das quais também já disponível de fontes independentes.
O principal produtor nacional de AZT, a Microbiológica (RJ), chegou a equipar-se para poder fazer face às necessidades do programa do Ministério da Saúde ao adquirir a antiga planta da Synthelabo, em Jacarepaguá, e hoje dispõe de mais de 60 m3 de capacidade de reator em suas duas plantas.
Diante da súbita mudança das regras, a empresa atualmente procura fabricar nucleosídeos para exportação àqueles mercados que ainda preferem pagar um sobrepreço para ter a garantia de qualidade de um produto não-asiático. Mas além do “custo Brasil”, que acrescenta talvez uns US$ 250/kg aos preços que o produtor nacional é obrigado a praticar, há uma desconfiança generalizada por parte de toda uma panóplia de entidades – Exército, Polícia Federal, o próprio Ministério da Saúde – em relação à exportação de moléculas sintéticas complexas, o que também acaba dificultando as vendas externas.
A saída da empresa foi uma fuga para frente. A Microbiológica hoje participa acionariamente de duas parcerias com empresas norte-americanas, por enquanto ainda alimentadas por venture capital, voltadas especificamente para a descoberta de novas terapias.
Além de acionista, a empresa brasileira poderá atuar como vetor “desenvolvimento de processo”, desde as primeiras sínteses ao nível dos gramas ou do quilo, até a produção industrial mais tarde quando a nova molécula sair na outra ponta do pipeline.
A maioria desses produtos são quirais, e a empresa brasileira acumulou um considerável acervo material e tecnológico no que diz respeito a métodos analíticos e tecnologia de fabricação nesse campo, acervo esse que a coloca na primeira divisão mundial da química dos antivirais.
Essa decisão foi tomada tendo em vista a evolução do mercado de antivirais em geral, não apenas de combate à aids, mais visível e mediático, como também a certas formas de hepatite e a outras doenças virais. Um dos fatores dessa evolução tem sido a proliferação de mutantes – só do vírus da aids já foram identificados 254 –, o que irá acabar fragmentando o mercado de princípios ativos.
A continuar nessa batida, acabaremos com coquetéis tailor-made para cada paciente e, em paralelo, multiplicam-se as oportunidades para os descobridores de novas drogas, sempre com o benefício do tratamento fast track dispensado pela FDA. Nos países ricos, aids já está deixando de ser tópico de grande interesse. Virou doença de pobre. Isso fez arrefecer o entusiasmo de grandes empresas farmacêuticas, como Glaxo, Bristol-Squibb ou Merck, mas poderá multiplicar as oportunidades justamente para empresas inovadoras de porte menor.
Os antivirais são o setor de maior crescimento do mercado farmacêutico, de quase 35% ao ano, ao longo do período 1996-2003 (proj.). Em 1996, representavam 10% do segmento que liderava o setor, o dos cardiovasculares; em 2003, projeta-se 50%.
O campo mais promissor é o dos inibidores de protease, moléculas quirais que se vendem a US$ 2.500-6.000/kg. Exemplos são o nelfinavir e o indinavir, cujas vendas mundiais já são superiores a US$ 400 milhões e US$ 200 milhões/ano, respectivamente.
Mas, nesse meio tempo, sábios do BNDES se declararam pela eutanásia da química fina brasileira, baseando esse obiter dictum na ausência de massa crítica e de economias de escala, e na dificuldade – essa talvez real – de conseguir homologar pela FDA uma planta cGMP no Brasil. A discussão pública do tema ainda costuma subentender o conceito cepalesco da substituição de importações, que nesses círculos vem custando a morrer.
Basta olhar para países como Irlanda, Coréia, Índia, China, cada um com uma success story para contar; e isso, em pouco tempo, duas décadas se muito. Ou seja, um pouco mais do que o tempo durante o qual se vem discutindo o destino dos ativos químicos do Grupo Econômico.
E não só esses países, pois até Portugal tem uma história a contar. A Hovione, controlada pela família Villax, que começou a vida modestamente com a química dos esteróides e hoje opera duas plantas de síntese altamente diversificadas – uma perto de Lisboa e a outra em Macau (!), ambos belos exemplos de ausência de massa crítica – acaba de anunciar sua intenção de investir algumas dezenas de milhões de dólares numa operação sediada em New Jersey.
Parece até que, por algum decreto tácito, a única reação química hoje em dia merecedora das atenções do setor público é a de polimerização. O resto … Uma política menos imediatista e casuística acrescentaria, é bem verdade, uns US$ 5-10 milhões anuais ao orçamento de US$ 300 milhões do programa de combate à aids. É pouco diante dos potenciais benefícios futuros para o país, seus químicos e sua indústria de síntese orgânica.
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