Juros altos e baixa liquidez controlaram a inflação e recuperaram a credibilidade do País, que pode voltar a crescer
O discurso oficial é coerente.
A promessa de um espetáculo de crescimento para 2004 encontra a “platéia” nacional esperançosa.
Antes mesmo do abrir das cortinas, especula-se quanto aos cenários macroeconômicos possíveis.
Os números frios registrados em 2003 evidenciam ter sido cavalar a dose do remédio amargo dos juros elevados, aliado à escassez de créditos e investimentos oficiais.
Ante a queda da inflação e a obtenção de superávit nas contas nacionais, os aplausos do setor empresarial foram reforçados, enquanto se espera para este ano o deslanchar de investimentos e a reativação econômica do País.
O crescimento real de modestos 0,1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional em 2003 foi o preço da dieta antiinflacionária.
A taxa de inflação anual medida pelo IPCA chegou a 9,3%, bem abaixo dos 12,5% de 2002, com o dólar cotado em R$ 2,80 ao final do ano, contra os R$ 3,71 de dezembro do ano anterior. A taxa básica de juros encerrou o ano em 16,5%, com trajetória declinante, tendo começado o ano anterior em 25%.
A combinação de índices de desemprego com a redução dos salários reais, tanto por efeito inflacionário quanto por corte de valor nominal, resultou no encolhimento da massa salarial da ordem de 15%, deprimindo negócios no mercado interno.
Com isso, a exportação de produtos cresceu e a importação caiu, conduzindo à formação do saldo comercial de US$ 24,8 bilhões, quase o dobro do registrado em 2002, de US$ 13 bilhões.
O preço do petróleo foi influenciado pela guerra do Iraque, com alta superior a 10% durante 2003, mas com tendência de redução de cotações a partir deste ano.
“As condições macroeconômicas são favoráveis à recuperação econômica brasileira em 2004, que herda o superávit em contas correntes de US$ 5,543 bilhões, muito bom, por reduzir a vulnerabilidade do País”, afirmou Mário Mesquita, economista-chefe do banco ABN-Amro Real.
Ele salienta a existência de algumas incógnitas, a principal delas representada pelo comportamento futuro da taxa de juros do Banco Central norte-americano, o FED. A economia dos EUA está fortemente estimulada, conseguindo evolução positiva de 2,9% do PIB (real), razão pela qual se espera a elevação dos juros básicos dos atuais 1% para 2% ao final de 2004.
Segundo Mesquita, a situação mundial favoreceu o investimento em ativos de risco em economias emergentes. No caso brasileiro, a entrada de capitais foi ampliada em 2003, a partir da recuperação da credibilidade no País, abalada com a eleição de um governo de tendência socialista.
As medidas graves adotadas na primeira hora de governo (elevação de juros, restrição de despesas e anúncio de respeito aos contratos firmados) voltaram a atrair investidores, que haviam saído de cena no ano anterior.
“A captação externa de recursos melhorou tanto que deprimiu a taxa de câmbio, tirando um pouco de competitividade internacional dos exportáveis brasileiros”, analisou.
Além do medo de Lula, Mesquita menciona o fato de os anos anteriores terem apresentado graves problemas locais e internacionais que abalaram a confiança dos investidores.
Em 2001, houve o “apagão”, a crise econômica argentina e o atentado de 11 de setembro nos EUA; 2002 foi marcado pelos escândalos financeiros em Wall Street, inaugurados pelo caso Enron, que minou a credibilidade do sistema contábil americano.
Já em 2003, houve também o forte temor de uma onda inflacionária, oportunamente debelada.
Do ponto de vista local, Mesquita recomenda cuidados para promover a recuperação da demanda interna. A recuperação da massa salarial será feita lentamente, de modo a evitar pressões inflacionárias.
A taxa de inflação, na sua análise, não deve ultrapassar a faixa de 5% a 6% durante 2004, o que evitará impacto ainda maior sobre a desvalorização dos salários.
A produção industrial geral do País apresenta alguma recuperação, embora com claros movimentos de anda e pára (stop and go), que indicam risco. “Nos bens duráveis e artigos exportáveis, a situação é mais confortável”, comentou.
Ele espera um aumento considerável na oferta de crédito aos produtores e aos consumidores durante 2004, com juros reais menores.
Um problema recorrente consiste nos gastos públicos. “Os tributos já absorvem 35% do PIB”, comentou. Nesse ponto, não há expectativa de melhora a curto prazo.
Algumas mudanças pontuais, como a não cumulatividade da Cofins, trazem alívio pequeno, enquanto se espera uma profunda reforma fiscal e tributária.
Com esses dados, Mesquita traçou um panorama otimista para 2004. O PIB nacional deve crescer 4,1%, com inflação domada em 5,1% (IPCA).
A balança comercial ainda terá alto superávit, de US$ 19,8 bilhões, um pouco menor que o de 2003, com uma valorização do dólar, que terminará o ano em R$ 3,20.
A taxa básica de juros cairá lentamente, até 13% (nominal), que corresponde à taxa real entre 8% e 8,5%, favorecendo investimentos produtivos.
“O desafio para 2004 é ampliar os investimentos, ainda muito tímidos, e alavancar as exportações a um patamar bem acima dos atuais US$ 70 bilhões”, afirmou.
Química vai bem – O faturamento líquido dolarizado do segmento de produtos químicos de uso industrial cresceu 20,3% em 2003, quando comparado ao ano anterior, embora a produção física só tenha sido ampliada em 4,5%.
Além da recuperação de preços, houve sensível aumento das exportações dos itens desse grupo, que ficaram 24,2% maiores.
Como as importações cresceram apenas 5% no ano, o déficit comercial químico foi reduzido de US$ 5,3 bilhões, em 2002, para US$ 3,9 bilhões.
Mariani – dissíduos podem recompor massa salarial.
“O problema maior do déficit químico está nos intermediários para farmacêuticos, fertilizantes e defensivos agrícolas, que acabam por gerar superávit comercial em outras cadeias produtivas, em especial no agronegócio”, afirmou Carlos Mariani Bittencourt, presidente do conselho diretor da Abiquim.
Ele salientou que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior já criou grupo para estudar a questão dos intermediários e fomentar investimentos.
Considerando toda a produção química nacional, Mariani manifesta expectativas as mais otimistas.
No segmento petroquímico, a conjunção de fatores como os preços cadentes do petróleo, o reduzido número de novas capacidades produtivas e ampliações do parque mundial existente (ver QD-421) e o já previsto aumento de demanda mundial conduzem a um quadro de recuperação de negócios e ampliação de margens de lucros.
Nem mesmo a débil situação do mercado interno obscurece as expectativas. “Caso o mercado local cresça, a exportação será diminuída; caso contrário, o setor continuará a exportar”, afirmou. Mariani aposta no primeiro caso.
“Está começando a temporada de dissídios, e o índice básico de negociação fica por volta dos 16%”, afirmou.
Além disso, ele frisou que o mercado mundial das resinas termoplásticas sempre acaba por encontrar um ponto de equilíbrio, manifestado no preço final e na concorrência entre materiais.
Tamanho otimismo exige investimentos produtivos de monta para impedir a formação de déficits comerciais no futuro.
“Falta resolver a questão do preço e disponibilidade das matérias-primas petroquímicas, além do problema tributário, em especial o ICMS, que onera demais o setor produtivo”, considerou.
“A economia nacional precisa crescer entre 7% e 8% ao ano para evitar problemas sociais.”
Dos segmentos a jusante, apenas o ramo farmacêutico teve desempenho ruim, crescendo 2,1% no faturamento líquido dolarizado, justificado pela retração do nível de renda da população e pela falta de políticas públicas para fornecimento de medicamentos, segundo Ciro Mortella, diretor-executivo da Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma).
Ligados ao setor agrícola, os segmentos de adubos e fertilizantes e o de defensivos obtiveram aumentos de faturamento líquido dolarizado de 18,2% e 21%, respectivamente.
Até mesmo suas exportações foram ampliadas, em 10% e 67%. Até 2007, a produção de fertilizantes deverá receber investimentos da ordem de US$ 367 milhões, enquanto a produção de defensivos, recentemente reforçada com a construção de fábrica integrada de glifosato na Bahia, vai receber US$ 60 milhões no mesmo período.
A previsão de ambos é colher resultados ainda melhores, por causa dos bons preços e demanda favorável pela soja e pela carne produzidas no Brasil.
O segmento de produtos de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos ampliou em 15,24% seu faturamento em dólares, principalmente com o reforço de 28,12% nas exportações. O segmento manifestou interesse em aplicar US$ 500 milhões em novos projetos até 2008.
Máquinas empatam – A indústria de máquinas e equipamentos fechou 2003 com faturamento nominal praticamente igual ao do ano anterior, da ordem de R$ 34,37 bilhões.
Descontada a inflação, o resultado fica entre 7% e 8% abaixo de 2002.
Como consolo para os empresários do setor, as exportações apresentaram excelente desempenho, com aumento de 31,6% entre janeiro e novembro.
Os números finais de 2003 devem registrar um acumulado de US$ 4,8 bilhões em vendas internacionais.
Delben – redução do IPI e PIB maior animam setor.
“Foi o melhor resultado de todos os segmentos industriais”, afirmou o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Luiz Carlos Delben Leite.
O resultado expressivo foi obtido a despeito da valorização do real frente ao dólar. “Conseguimos ganhar competitividade e, agora, nosso esforço é disseminar essa característica pelo maior número possível de empresas do setor”, afirmou.
Para 2004, Delben Leite espera melhores resultados no mercado interno. “O PIB deve crescer por volta de 3,5%, elevando o faturamento das empresas do setor mecânico em 6%”, avaliou. Contribuirão para esse resultado a queda nas taxas de juros e o controle da inflação.
Algumas linhas de máquinas e equipamentos, como os voltados para a indústria de petróleo, agricultura, têxteis e máquinas-ferramenta, tiveram demanda razoável mesmo em 2003, e devem manter-se muito ativas em 2004.
A redução do IPI de 5% para 3,5%, com intenção oficial de redução a zero até 2006, também poderá alavancar negócios.
A indústria eletroeletrônica nacional conseguiu faturamento 17% maior em 2003, apesar das dificuldades enfrentadas por vários setores industriais.
“Muitas encomendas já haviam sido feitas em 2002 e não podiam ser canceladas”, explicou Nelson Ninin, diretor da Abinee.
“Além disso, grande parte dos negócios realizados em 2003 foi relacionada a investimentos em aumento de produtividade, modernização e reposição de linhas.”
A Abinee ainda não realizou a reunião de diretoria sobre os resultados finais do ano passado e montagem de perspectivas para 2004, mas Ninin, em caráter pessoal, entende que o setor espera uma recuperação de negócios a partir de março, contando com as vendas fechadas no final do ano passado e fatores como o controle da inflação, estabilidade cambial e o anúncio de investimentos produtivos.
“Caso se concretizem esses anúncios, o setor poderá crescer 15% em 2004”, afirmou.
Como o setor importa componentes, a estabilidade cambial se torna fator crucial. “As variações abruptas significam risco elevado para as operações”, considerou.
Como a taxa de câmbio atual pode ser considerada baixa, há uma tendência de redução de preços finais aos compradores.
Um complicador é a atual mudança de valor relativo entre o dólar e as demais moedas fortes, como o euro e o iene.
Também presidente na América do Sul da japonesa Yokogawa, Ninin verifica que alguns produtos japoneses e europeus tornaram-se menos competitivos em relação aos norte-americanos.
“Não acredito que isso perdure, porque a economia americana está reagindo, fato que deve devolver valor à sua divisa. Além disso, as companhias internacionais possuem fábricas em vários países, com diferentes estruturas de custos que podem absorver essa diferença”, ponderou.
Ao contrário de outros anos, Ninin não identifica algum setor com desempenho muito superior ou inferior, aos demais.
“Todos os segmentos estão mais ou menos equilibrados, exigindo acompanhamento atento”, disse. A agroindústria detém bons resultados, principalmente na exportação, mantendo sua atratividade para novos investimentos.
Tradicional líder de compras no Brasil, a Petrobrás dispõe de um vultoso plano de investimentos para os próximos anos.
“A estatal já anunciou que vai ampliar as compras a partir de empresas com produção local, com as quais está contribuindo para capacitação tecnológica”, comentou. Em 2003, a companhia promoveu uma revisão de prioridades no plano de investimentos, sem grandes alterações.
Em março de 2004, deve ser divulgada a revisão de planejamento até 2015, talvez trazendo algumas alterações. “Os investimentos serão feitos, isso já está garantido”, disse.
O ano de 2004 começa livre de grandes preocupações macroeconômicas e com cenário internacional favorável. “Este ano vai definir os rumos do governo Lula; as coisas precisam acontecer tal qual prometidas”, afirmou.
Cautela no comércio – O setor de comércio de produtos químicos inicia o ano com uma visão otimista, porém cautelosa.
“O ano passado foi muito difícil, dominado pelos ajustes necessários ao controle da inflação”, avaliou Rubens Medrano, presidente do sindicato estadual e da associação brasileira das empresas de comércio químico (Sincoquim e Associquim), além de diretor da Federação Nacional do Comércio (Fecomércio).
“Temos a esperança de que o governo incentive investimentos e também o crescimento da renda interna da população, de modo a permitir a evolução do consumo; mas, até agora, não vemos medidas concretas nesse sentido.”
Ao contrário, a eliminação da cumulatividade da Cofins (contribuição para a seguridade social) foi acompanhada pela majoração da alíquota, quase duplicada.
Para o setor de serviços, o repasse da pancada tributária é impossível. Para comércio e indústria, a transferência do tributo para o consumidor, embora complicada, será inevitável.
“Mais uma vez a renda está sendo transferida do setor produtivo para o setor público”, lamentou Medrano. O dirigente setorial preferia que o estado brasileiro, em todos os níveis, se preocupasse mais em cortar custos do que em ampliar a arrecadação. “Não dá mais para segurar a inflação com recessão”, afirmou.
Mesmo assim, Medrano ainda encontra razões para alimentar a postura otimista. No âmbito internacional, a recuperação americana e o crescimento dos negócios na Ásia garantem boa demanda por produtos químicos, cujas cotações devem apresentar alguma recuperação ao longo do ano.
“A indústria química local se beneficiará disso, pois poderá exportar excedentes”, comentou. O setor comercial terá a oportunidade de também melhorar suas margens, caso a demanda interna reaja satisfatoriamente.
“O poder de compra da população continua muito baixo, basta verificar o desempenho das vendas do comércio no final do ano passado”, afirmou.
A grosso modo, Medrano acredita que 2004 traga melhores resultados que 2003, mas não espera um desempenho fantástico.
Medrano – juros e tributos oneram setor produtivo.
“O câmbio precisa ficar estável e também a inflação, para que possamos trabalhar com mais segurança”, disse.
As taxas de juros seguem altas, a despeito da redução da taxa básica (Selic) que só é aplicada aos títulos do governo.
“Os juros cobrados das empresas e das pessoas físicas é pelo menos o dobro da Selic, são insuportáveis”, avaliou.
Segundo ele, os setores exportadores seguem muito ativos, sustentando a demanda por insumos.
Com a agroindústria ativa, as vendas de tratores, máquinas e equipamentos vão bem, consumindo tintas industriais, entre outros produtos com forte participação química (lubrificantes, plásticos especiais etc.).
“O ânimo das empresas de comércio está muito mais elevado que no começo do ano passado, quando a insegurança com o novo governo era muito grande”, avaliou.
Nota-se o entusiasmo da platéia ao abrir das cortinas do ano de 2004. Resta acompanhar o enredo para ver, ao baixar o pano no último ato do ano, se a peça era um drama épico de final glorioso ou uma comédia pastelão de gosto duvidoso.