Perdas da Águas de Guariroba caíram de 57% para 19%, em Campo Grande-MS
Mesmo que a distribuição de água de abastecimento, com 84,2% da população atendida, seja um problema “menor” do saneamento, em comparação com a deficitária rede de esgoto do País, que atende só a 55,8% da população, há um gargalo (perdas de água) ligado a ela que preocupa.
Trata-se do alto índice de perdas de água na distribuição, que na média nacional é de 40%, quantidade suficiente para abastecer mais de 63 milhões de brasileiros em um ano. E é bom lembrar que há várias cidades, principalmente na região Norte, que chegam a perder 84% da água tratada na rede, caso de Porto Velho-RO, ou 81%, como ocorre na capital de Roraima, Boa Vista.
A literatura do setor divide as causas para o desperdício entre perdas reais e aparentes da rede. A primeira representa o volume de água perdido em toda a cadeia da produção da água, desde a captação, passando pelo tratamento, armazenamento e, por fim, na distribuição, antes de chegar ao ponto de consumo. Os motivos aí são técnicos, em vazamentos e extravasamentos em reservatórios, nas adutoras e nas redes até o ponto de medição do consumidor.
Por sua vez, as perdas aparentes (ou comerciais) são os volumes consumidos, mas que não são faturados. Nesse caso, as causas podem advir de erros de medição dos hidrômetros, mas também são causadas por ligações clandestinas, nome mais ameno para roubo de água, uma prática infelizmente comum no País.
Esse cenário ainda preocupante tem provocado reações do setor de saneamento, principalmente depois do novo marco regulatório, que atraiu agentes privados para as concessões, mais interessados em melhorar suas receitas, com menos desperdício de seu insumo principal. Mas também, justiça seja feita, faz parte de ações das companhias públicas mais eficientes, como Sabesp, Sanepar e Copasa, que também se empenham em reduzir um pouco o índice de perdas ainda elevado na média brasileira.
IA no combate a perdas de águas
Uma prova da tendência de se ater mais ao problema das perdas é o aumento da oferta de soluções tecnológicas, até mesmo com inteligência artificial (IA), para monitorar as redes de distribuição e encontrar os pontos de vazamento e de fraudes. Há tanto casos de companhias de saneamento que adotam soluções importadas como outros de startups e empresas nacionais criando suas próprias soluções.
É um exemplo de empresa preocupada com o tema a Aegea, o maior grupo de concessionárias privadas do País, hoje responsável pelos serviços de água e esgoto de 21 milhões de pessoas no Brasil, em 171 municípios, por meio de várias concessões.
Por meio de um programa de eficiência energética e de redução de perdas de água, institucionalizado para ser adotado em todas as suas operações, em seu último dado levantado a empresa obteve redução no índice de perdas de 39 bilhões de litros de água em suas concessões em 2021, o suficiente para abastecer 970 mil pessoas por um ano.
Segundo o gerente executivo de engenharia da Aegea Saneamento. Moisés Salvino, os esforços se iniciaram em 2013, quando a companhia desenvolveu um departamento especializado em combate a perdas, e a partir daí a nova área gerou uma demanda interna por novas tecnologias, implementadas por especialistas multidisciplinares voltados ao problema. “Acompanhamos uma série de indicadores já consagrados na literatura, por exemplo, o Índice de Perdas na Distribuição (IPD), o Índice de Perdas por Ligação (IPL) e o Nível Econômico de Perdas (NEP)”, diz.
Conforme explica, por meio do programa de redução de perdas é feito o planejamento e monitoramento das redes e pressões, setorização, instalação de válvulas que dividem as tubulações em setores, permitindo que obras e intervenções aconteçam pontualmente e sem afetar o sistema como um todo. Além disso, é realizada a instalação de equipamentos que registram e regulam automaticamente pressões da água em diversos pontos monitorados. Paralelamente, há ações de fiscalização e regularização de ligações clandestinas.
Um exemplo de programação para combate a perdas de água do grupo que inclui uso de tecnologias vem de Campo Grande-MS, onde a Aegea atua por meio da concessionária Águas Guariroba, que desde 2010 teve seu índice de perdas de água diminuído de 57% para 19%.
Na cidade, a Aegea utiliza a tecnologia israelense Takadu, para gestão de eventos e detecção de vazamentos, solução também empregada na concessionária Prolagos, da região dos Lagos, no Rio de Janeiro. A partir do uso de algoritmos, a central de controle da concessionária detecta o comportamento esperado para as variáveis operacionais de vazão, pressão e nível dos reservatórios.
A plataforma da tecnologia indica o tipo de evento ocorrido quando o sistema apresenta um comportamento fora do padrão, o que possibilita uma investigação de forma direcionada para a causa das variações na rede de distribuição, onde, em alguns casos, são constatados vazamentos não visíveis em tubulações ou ramais. Segundo Salvino, o grupo está ainda utilizando a tecnologia também israelense Asterra, que utiliza satélites para procurar por vazamentos não-visíveis. A solução é empregada na concessionária Águas do Rio e, segundo o gerente, tem contribuído para antecipar os resultados de redução de perdas do grupo. “Como resultado, ambas as tecnologias têm o efeito de aumentar a assertividade das equipes de pesquisa de vazamento com priorização de locais identificados com potencial vazamento”, diz.
Com seu grande número de concessionárias, a Aegea, ainda segundo Salvino, se adapta aos diferentes tipos de redes utilizadas, utilizando modelagem hidráulica para avaliar as posições nas quais ocorrem os vazamentos e trocando materiais onde necessário no sistema. Também são empregadas tecnologias para identificar a frequência do som do vazamento (geofone) para ajudar a localizá-lo.
No momento, explica, a Aegea realiza investimentos elevados principalmente em Campo Grande-MS e Manaus-AM, mas ao todo há mais de cem projetos de combate a perdas no grupo. Os principais investimentos envolvem infraestrutura para melhorias na distribuição com a setorização e ampliação dos sistemas de micromedição e macromedição.
Como últimos resultados, o gerente menciona a operação em Santa Catarina. Na concessionária Águas de Bombinhas, o índice de perdas de água tratada registrou a média móvel de apenas 12% em 2022. E na Águas de Camboriú, a média móvel foi de 17,9%. Nessas concessões, os índices de perda de água são captados pela central de controle operacional, um sistema que atua 24 horas por dia no monitoramento das pressões ao longo de todo o sistema. “Esse monitoramento permite tomar ações rápidas e mitigar as fragilidades que possam levar ao aumento de perdas”, diz.
A perspectiva de que mais concessionárias invistam para evitar perdas de água, que somadas no Brasil representam um prejuízo próximo dos R$ 15 bilhões anuais, tem estimulado o surgimento de soluções tecnológicas. Um exemplo é o desenvolvimento da startup Galax.ia, de Joinville-SC, que a partir de 2020 passou a implementar, inicialmente em testes e atualmente já comercialmente, uma solução que envolve três linhas de produtos específicos para monitorar redes e evitar perdas.
A primeira linha, batizada de Órion, explica o diretor da Galax.ia, Felipe Fraporti, é de dispositivos de telemetria (sensores) utilizados para coletar dados de vazão, pressão e ruído das redes, para serem instalados na macromedição, ou seja, em adutoras, poços e reservatórios, ou na micromedição, nos cavaletes.
A criação dessa linha, diz Fraporti, veio como consequência da primeira intenção da empresa, de criar algoritmos de inteligência artificial para monitorar e operar as redes. Ao perceber que as empresas de saneamento não tinham dados históricos da operação para alimentar os algoritmos, a startup teve a ideia de fornecer os sensores para a coleta dos dados. Os sensores para vazão e pressão já são fornecidos e em breve será lançado o de ruído, que vai permitir detecção com maior precisão da localização dos vazamentos.
A segunda linha, batizada de Hydra, é de dispositivos para controle das válvulas redutoras de pressão (VRP) e boosters (bombas hidráulicas de recalque), utilizados para monitorar a pressão da rede em pontos críticos. Esses dispositivos são instalados nas bombas e válvulas para conectá-las com a nuvem da empresa e permitir o controle de forma remota e automática. “Com isso, é possível otimizar o sistema com os dados coletáveis”, diz.
Para mostrar a vantagem desse monitoramento, Fraporti utiliza o exemplo de uma operação com bomba instalada em um pé de morro e que pressuriza a rede para elevar a água.
Fraporti mostra sensor que coleta dados nos cavaletes
“Muitas vezes essa bomba está sobredimensionada para a pressão no topo do morro ficar alta, mas isso gera um custo alto de energia e, caso tenha vazamentos, eles ficarão ainda maiores. Com a inteligência aplicada, controlamos a bomba nesses pontos críticos, de forma que a operação fica mais eficiente”, explica.
A terceira linha de produtos envolve a inteligência artificial propriamente dita, ou seja, os softwares com os algoritmos de big data e analytics para detectar anomalias na rede e prever problemas, consumo e comportamentos. Batizado de Volans, o sistema desenvolvido pelos profissionais da Galax.ia é treinado com os dados coletados para, depois de um tempo, apontar anomalias no processo de distribuição de água. Segundo o diretor da startup, qualquer problema pode ser alertado para a central de controle e também gerar aviso para o operacional via celular, por robô, usando o aplicativo WhatsApp.
De acordo com Fraporti, em várias experiências práticas com os algoritmos de IA foi possível atingir uma acurácia na detecção de vazamentos de 93%. “E isso apenas com um tipo de dados. A ideia agora é juntar diversos tipos de dados e informações para aumentar ainda a acurácia”, diz. A tecnologia também está reduzindo o número de alertas falsos em 50%. “As técnicas tradicionais de monitoramento geram muitos alertas falsos, o que fazia os operadores ignorarem os alertas, porque é um custo muito alto mandar equipes para reparo em lugares onde não há nada errado”, explica.
A linha dos algoritmos, por conta dos resultados obtidos, permitiu que a empresa tivesse acesso a recursos do Finep para investir e melhorar a inteligência artificial, que fica 24 horas rodando e gerenciando alertas da operação, com coleta de dados em larga escala.
De acordo com Fraporti, as tecnologias da empresa já estão em 15 municípios, depois de ter se iniciado com um termo de cooperação técnica com a Companhia Águas de Joinville-SC (CAJ), onde o sistema foi aplicado como teste para entender a aplicação na operação. “A meta é chegar a 30 cidades até o fim do ano”, diz. Nos municípios que já adotam as tecnologias, uns optam por usar apenas a linha de sensores ou de controle das VRPs e outros uma combinação deles.
A maior parte dos clientes são concessionárias privadas ou grupos privados que fornecem para autarquias públicas. Entre os clientes, há o caso de fornecimento para a Aegea Rondônia, um estado famoso por ter dos maiores índices de perdas do País e cujo problema a concessionária privada está tentando debelar nos quatros municípios onde atua. “Por enquanto, eles estão usando nossa telemetria e os alertas via WhatsApp”, completa.
Mais solução nacional para controlar perdas de água
Outra empresa que está introduzindo uma tecnologia para controle de perdas é a SmartAcqua Soluções Tecnológicas, startup e subsidiária brasileira da norte-americana SmartAcqua Solutions. Trata-se de software criado a partir de 2019 por uma equipe formada por profissionais de TI e outros especializados em gestão de recursos hídricos.
De acordo com o CEO da SmartAcqua Solutions, Hélio Samora, o software trabalha com um grande volume de dados de medição, macromedição, modelagem hidráulica, e com qualquer outra fonte de dados, para tirar informações mostrando vazamentos e submedições. Além disso, ele ajuda a planejar a troca de ramais e de redes, fazendo um cruzamento entre demanda e perdas, e a calcular o balanço hídrico da cidade, do bairro e da rua.
Samora: software analisa dados para localizar os vazamentos
“Matematicamente, o software aponta onde pode ter uma submedição ou vazamento e tem a capacidade de lidar com grande volume de dados que nenhuma planilha, nenhum ser humano tem a capacidade de fazer”, diz Samora.
Em fase inicial de aplicação, com a criação de banco de dados coletados em várias cidades do País, a tecnologia também passou por uma prova de conceito na CAJ, em Joinville. Os testes mostraram que o software identificou os locais (bairros e ruas) que apresentavam maiores perdas de água. Foram feitos 231 apontamentos, 141 fiscalizações e identificados e consertados 93 pontos de vazamentos, dos quais 17 visíveis, 15 em redes, 17 em ramais, além de 21 ligações clandestinas e três poços.
Com a prova de conceito com resultados significativos, a solução foi incluída em licitação de contrato de performance para controle de perdas em Joinville, vencido pela prestadora de serviços Allsan, que utilizará o software na detecção de irregularidades e anomalias no consumo de água. “A companhia utilizará o software pelo tempo de contrato (5 anos) para executar a gestão dos resultados alcançados”, explica Clarissa Campos de Sá, gerente do Centro de Inteligência e Operações da CAJ. A cidade catarinense tem adotado ações para reduzir as perdas de água desde 2006. Passou de um índice de perdas de 62,71% em 2006 para 41,8% em 2021, mas com a solução tecnológica e outras ações tem meta de chegar a 25% antes de 2033, índice e data limites estipulados pelo novo marco do saneamento. Com o contrato de desempenho, segundo o CTO da SmartAcqua, Enéas Ripoli, é possível que as empresas de saneamento, que não dispõem de tecnologia, equipes ou de recursos suficientes para a operação, tenham a oportunidade de recuperar as perdas de água.
Ripoli: controle bem feito transforma perdas em receita
“O prestador de serviços fornece a engenharia, equipamentos, software, serviços e arca com todos os custos. Pode ser um prestador sozinho ou em consórcio com outras empresas para fazer esse trabalho e atender à questão das perdas de água nas empresas de saneamento”, explica Ripoli.
O ressarcimento do investimento se dá com o crescimento da receita das empresas de saneamento e/ou com a redução de custos operacionais em tempo determinado na licitação. Esse tipo de contrato para perdas começou a ser adotado pela companhia paulista Sabesp há alguns anos e, na sequência, foi emulado em outros lugares no País.
Na CAJ, o contrato de performance para perdas aparentes com a solução SmartAcqua está rodando desde junho de 2022. Os serviços incluem a troca de 15 mil hidrômetros, adequação de 4.800 cavaletes, substituição de hidrômetros de grande capacidade, censo cadastral e uso da inteligência artificial para detecção de fraudes, utilizada na fase de implantação de escopo mínimo e nos cinco anos restantes do contrato. A meta da companhia é ter um incremento de 76 mil m³/mês de água tratada.
Foi realizada outra prova de conceito da tecnologia em Curitibanos-SC, cuja operação do saneamento está a cargo da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento, a Casan. Com o software, foi possível descobrir que havia cinco vazamentos a cada quilômetro de rede avaliado, além de furtos de água.
Segundo o engenheiro da SmartAcqua, Fabrizio Campos, o software foi usado para fazer o planejamento de todas as etapas dos trabalhos que seriam realizados em campo. Os dados da Casan relacionados a Curitibanos foram inseridos na solução e tratados pelos algoritmos de IA, para identificar, potencializar e georreferenciar as perdas de água. “Com base nesse processamento, foi obtido um diagnóstico e prognóstico da cidade e do sistema de distribuição para verificar quais eram as regiões e os bairros que deveriam ser priorizados”, explica. Embora o SmartAcqua identifique perdas físicas e comerciais, na prova de conceito em Curitibanos o trabalho se concentrou nas perdas físicas. “Utilizamos mapas de calor para o georreferenciamento, o que nos deu a visualização das informações no espaço geográfico que ajudaram no planejamento das ações”, explica Campos. Após essa etapa, foram escolhidos sete pontos da cidade, três dos quais no bairro de Água Santa e quatro no de São Luiz.
No bairro de Água Santa, houve seis ocorrências em três ruas, em que foram encontrados vazamentos no cavalete e nos ramais. No bairro de São Luiz foram identificados três pontos em duas ruas. “No total, identificamos que havia cinco vazamentos por km de rede. É uma média muito alta de perdas. Nos dois bairros identificamos um potencial de recuperação de 15.988 m³ de água por mês. E, na cidade de Curitibanos como um todo, o potencial de recuperação é de 52.488 m³ por mês”, diz Campos.
Com cerca de 40 mil habitantes, dos quais 92,11% em área urbana e 7,89% em área rural, Curitibanos tem índice de perdas na média nacional, de 43,7%, com 304 litros por dia de perdas por ligação. Foi justamente por conta disso que a Casan escolheu a cidade para a experiência com o software de inteligência artificial, já que tem um dos maiores índices entre os 195 municípios sob responsabilidade da companhia no estado catarinense.
Além dessas primeiras experiências, a expectativa do uso da inteligência artificial no saneamento é grande, segundo Ripoli. “O uso da IA fornece assertividade porque os algoritmos processam todas as informações e têm grande capacidade de comparar dados que um ser humano não consegue, ou demora muito, ou porque a qualidade do trabalho não é boa”, diz.
Um ponto importante da tecnologia desenvolvido, para o CEO da empresa, Hélio Samora, é ter um módulo para fazer o estudo de viabilidade econômica de intervenções na operação da distribuição. “Permite analisar, por exemplo, se em determinada situação valeria a pena trocar dois km de tubulação ou colocar redutores de pressão”, explica. O software da empresa pode ser integrado a qualquer sistema e inclusive, na pior das hipóteses, importar dados de uma planilha Excel.