O desafio do armazenamento de energia renovável – ABEQ
Olá, leitoras e leitores. Nesta nossa última coluna deste extravagante ano de 2020, vamos tentar entender porque a transição para um mundo que dispense a energia produzida a partir de combustíveis não renováveis, fósseis ou nucleares, e se mantenha somente utilizando energias renováveis é ainda, infelizmente, uma quimera. O obstáculo ainda intransponível é como armazenar eficientemente a energia renovável produzida.
Energia no mundo
A Agência Internacional de Energia (AIE) informa em seu site o fornecimento de energia total no mundo por tipo de fonte. Os últimos dados apresentados são de 2018 e estão na tabela abaixo. Os dados são apresentados em ktoe, ou mil toneladas de óleo equivalente – a unidade usada é uma pista do tamanho do problema. Os dados se referem aos mais deferentes fins – consumo humano, produção, transporte e aquecimento. Na tabela, carvão inclui também turfa e xisto.
Energia Renovável
Os combustíveis fósseis (ou nucleares) não são renováveis, ou seja, eles utilizam recursos finitos que eventualmente diminuirão, tornando-se muito caros ou ambientalmente prejudiciais para serem recuperados. Combustíveis nucleares ainda geram resíduos cujo gerenciamento é complexo, pois há um risco à saúde humana que perdura por muitos anos. Em contraste, os muitos tipos de recursos de energia renovável – como a energia eólica e solar – são constantemente reabastecidos e nunca se esgotarão.
A maior parte da energia renovável vem direta ou indiretamente do sol. A luz solar, ou energia solar, pode ser usada diretamente para aquecer e iluminar casas e outros edifícios, para gerar eletricidade e para aquecer água, resfriamento solar e uma variedade de usos comerciais e industriais.
O calor do sol também impulsiona os ventos, cuja energia é capturada por turbinas eólicas. Então, os ventos e o calor do sol fazem a água evaporar. Quando esse vapor d’água se transforma em chuva ou neve e flui morro abaixo em rios ou riachos, sua energia pode ser capturada na forma de energia hidrelétrica.
Junto com a chuva e a neve, a luz do sol faz com que as plantas cresçam. A matéria orgânica que compõe essas plantas é conhecida como biomassa. A biomassa pode ser usada para produzir eletricidade, combustíveis para transporte ou produtos químicos. O uso de biomassa para qualquer um desses fins é denominado bioenergia.
Há ainda a energia geotérmica e a energia das marés, ambas renováveis. A energia geotérmica é a energia gerada e estocada no interior do nosso planeta. No limite do manto-núcleo do planeta, a temperatura pode chegar a 4.000°C. Em alguns pontos do planeta, há liberação de água a temperaturas a partir das quais é possível obter energia útil. É possível ainda, em pontos específicos da superfície dos continentes, a injeção-circulação de água-vapor de modo a gerar energia. A energia das marés pode ser obtida por diferentes equipamentos a partir do movimento das marés, mais previsível que os ventos ou a energia solar.
Armazenamento de energia
O armazenamento de energia depende do tipo de energia. Energia proveniente de combustíveis está naturalmente estocada. Petróleo e carvão são formas muitíssimo eficientes de armazenamento de energia. Uma tonelada de petróleo equivale a 42 bilhões de Joules, ou, em números mais precisos, 41,87 GJ, ou 11,63 MWh. A mesma quantidade de energia está contida em 1,43 toneladas de carvão mineral. Para obter a mesma quantidade de energia são necessários 11.100 m³ de gás natural.
“Armazenar” energia é importante porque a demanda varia de acordo com a hora do dia e com a época do ano. É o “estoque” que permite suprir essas variações de demanda. Quando lidamos com energia renovável, a complexidade aumenta, pois luz solar, ventos e rios também oscilam em intensidade ao longo do dia e do ano.
Estocar hidroenergia é estocar água. Nós brasileiros conhecemos bem essa questão. No Brasil, grandes usinas hidrelétricas associadas a grandes represas foram construídas até a década de 80. Grandes represas implicam assombroso consumo de concreto (material exaurível e cuja produção demanda muita energia térmica) e um rastro de devastação descrito de maneira poética pela dupla Sá e Guarabira na música Sobradinho, de 1977. Na década de 90, foi a vez das pequenas centrais hidrelétricas (PCH). Usinas menores, menor impacto ambiental e menor geração de eletricidade. Na década passada, vimos a construção de duas grandes usinas hidrelétricas ‘a fio d’água’ na Amazônia – Santo Antônio e Jirau – que deram na pior combinação possível: devastação ambiental sem estoque de água. Hidrelétricas ‘a fio d’água’, segundo a Aneel, utilizam “reservatório com acumulação suficiente apenas para prover regularização diária ou semanal, ou ainda que utilize diretamente a vazão afluente do aproveitamento”. Portanto, nas usinas ‘a fio d’água’ temos oscilação da oferta ao longo do ano.
Energia geotérmica e energia das marés têm fluxos de geração bastante estáveis, de modo que o armazenamento não deve ser uma preocupação. Contudo, a energia geotérmica aproveitável está disponível em apenas parte da crosta terrestre, não é uma solução global para a substituição dos combustíveis fósseis. Os equipamentos para aproveitamento da energia das marés têm um custo de instalação bastante alto, pois a tecnologia é recente. Além disso, o impacto ambiental na vida marinha não deve ser desprezado. Alguns peixes podem não utilizar mais a área se ameaçados por um objeto em rotação ou ruído constante.
[adrotate banner=”276″]Bioenergia é sem dúvida a forma de energia renovável mais madura disponível. Pode ser obtida por diferentes rotas a partir da biomassa – queima direta, gaseificação ou pirólise, ou fermentação para produção de combustíveis. Contudo, a bioenergia depende da produção sustentável de biomassa para este fim. Em um mundo cada vez mais populoso e rico, a demanda por alimentos cresce tanto quanto, ou mais do que, a demanda por energia. Em algum momento, a produção de alimentos e de biomassa para produção de energia competirão entre si por áreas cultiváveis. Ainda assim, com a tecnologia disponível hoje, mesmo se toda área cultivável do planeta fosse disponibilizada para produção de bioenergia, esta não atenderia toda a demanda do planeta. Portanto, a bioenergia é apenas parte da solução para a transição energética.
Então, dadas todas as restrições conhecidas, parte delas listadas aqui, a transição para o uso de somente energia renovável deve passar necessariamente pelo aumento considerável da geração de energia solar e energia eólica. Porém são estas formas de energia as que têm mais complicações associadas ao armazenamento.
A questão da intermitência
Podemos entender as implicações da intermitência da produção de energia avaliando a produção caseira (distribuída) de eletricidade por células fotovoltaicas.
Como a força e o ângulo do sol variam ao longo do dia e das estações, o mesmo ocorre com a intensidade da radiação solar e isso afeta a quantidade de eletricidade que o sistema de energia solar irá gerar. A maior geração solar durante o dia é geralmente das 11h às 16h. Os dias são mais longos no verão e mais curtos no inverno e, correspondentemente, a quantidade de eletricidade gerada pelo mesmo sistema de energia solar, no mesmo local, muda com as estações. Isso significa que alguns sistemas solares podem gerar o dobro da eletricidade no verão do que nos curtos dias de inverno. A Figura 1 apresenta a variação de consumo e de geração de eletricidade de uma casa na Austrália que consome 30 kWh por dia em média e dispõe de um sistema de geração de energia solar de 3kW (esquerda) e como a geração de eletricidade de um sistema equivalente varia ao longo do ano, também na Austrália.
A Figura 1 nos permite perceber que uma casa que dispõe de células fotovoltaicas para geração de energia normalmente exporta energia para a rede de distribuição durante o horário comercial e importa energia da rede durante a noite. Poderia ainda armazenar parte da energia que consumirá à noite, quando as pessoas que moram naquela casa estarão lá consumindo. Esta é uma configuração muito benéfica em escala individual, mas que têm problemas crescentes com o escalonamento.
Normalmente, sistemas caseiros de produção de energia solar são subsidiados, no Brasil e em boa parte do mundo, por serem muito caros. Portanto, temos uma distorção do mercado em que os mais pobres, que não podem comprar sistemas fotovoltaicos para suas casas, subsidiam com seus impostos a economia da conta de luz dos mais ricos.
Para além da questão social, se lembrarmos que cidades são densamente ocupadas por edifícios altos, a produção distribuída não atenderia a demanda das cidades. Então, sistemas centralizados de produção de eletricidade por painéis solares – fazendas solares – são necessários. Contudo, a questão da intermitência permanece. Como a incidência de luz solar varia ao longo do dia e ao longo do ano, centrais elétricas baseadas em energia solar devem ser dimensionadas para o pior caso – produzir e estocar eletricidade para ser consumida 24 horas por dia considerando a disponibilidade de luz solar do inverno. Além do custo extra gerado pela redundância necessária, há as questões de: (1) como estocar a energia, (2) manter um sistema de distribuição flexível o suficiente para receber eletricidade de várias fontes simultaneamente intermitentes, (3) o que fazer com o excesso de eletricidade se as várias fontes estiverem produzindo no seu pico.
A questão do armazenamento
Baterias são inexoráveis em sistemas de produção intermitente. Isso é fácil de entender se fizermos uma analogia com baterias de notebooks ou nobreaks ligados a desktops. Se trabalhamos em um computador sem bateria ou nobreak, oscilações na rede elétrica podem nos fazer perder trabalhos de horas, dias ou meses, ou mesmo perder a máquina. A geração de energia fotovoltaica pode ser apagada por uma nuvem de chuva. A geração de energia eólica pode ser apagada por uma calmaria. Portanto, baterias dão a estabilidade necessária ao sistema.
O padrão tecnológico atual são as baterias de sais de lítio. Seu custo é muito alto, mas vem caindo muito. Em veículos elétricos, o custo das baterias era US$ 1.000 por kWh em 2010 e US$ 230 por kWh em 2016. As baterias de lítio têm vida útil, e as principais fontes de lítio estão em países “politicamente complicados”, como Bolívia, China e Congo, mas essa é uma realidade similar à do petróleo durante boa parte do século XX.
Aparentemente, fontes secundárias de lítio estão mais bem distribuídas pelo mundo, a tecnologia para a reciclagem de baterias também avança rapidamente e alternativas ao lítio têm sido desenvolvidas. Por exemplo, em 2017, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) descobriu reservas de lítio no Vale do Jequitinhonha (MG) equivalentes a 8% das reservas mundiais. Hu et al. (2020) desenvolveram bateria de alumínio-enxofre (Al-S) com desempenho similar às baterias de lítio. Toledo et al. (2010) descreveram o potencial das baterias de sódio-enxofre (Na-S).
Contudo, para complicar, baterias são ineficientes para estocar energia por muito tempo (Figura 2). Alternativas às baterias para estocagem de longo prazo de energia também têm sido consideradas. As principais são o hidrogênio verde e os sistemas de estocagem Power-to-Gas (Jentsch et al., 2014). Sobre o hidrogênio verde, mencionamos sua importância na edição 616 desta Química e Derivados (“Retomada (Verde)?”). Na mesma edição, Marcelo Rijo Furtado (“Hidrogênio é a chave para a economia de baixo carbono”) contextualiza a produção do hidrogênio verde em um artigo cuja leitura vale a pena.
Considerando as implicações técnicas, o hidrogênio verde implica uma perda de parte da energia, pois no processo de eletrólise da água o valor energético do hidrogênio produzido é cerca de 80% da eletricidade usada para dividir a molécula de água. Contudo, enquanto baterias armazenam eletricidade eficientemente por poucos dias, a estocagem de energia na forma de hidrogênio já se mostrou viável por meses. O desafio é a consolidação técnico-econômica de reservatórios de sistemas distribuídos de hidrogênio – para casas e veículos, por exemplo.
[adrotate banner=”276″]Sistemas Power-to-Gas são uma derivação dos sistemas de hidrogênio verde. Nestes sistemas, o hidrogênio verde e gás carbônico são combinados em uma reação de metanação para produzir metano e água (Figura 3). As vantagens seriam: a captura de CO2 em um sistema fechado com resultado líquido final de diminuir a concentração de CO2 da atmosfera com a substituição das fontes de energia fóssil; e a possibilidade de utilizar os sistemas atuais de estocagem e uso de gás natural – em termelétricas e veículos.
Em Resumo
A transição para um mundo que utilize apenas fontes renováveis de energia passa pelo aumento significativo de sistemas centralizados de produção de energia eólica e solar, e pelo armazenamento da energia produzida por esses sistemas na forma de hidrogênio ou metano. Tais sistemas conviverão com usinas hidrelétricas e bioenergia produzida a partir de biomassa ou resíduos. A intensificação da utilização de gás natural de fontes tradicionais durante a transição é provável. Como mencionou Marcelo Furtado em artigo já citado, o Brasil já tem “a matriz elétrica mais limpa do mundo, com 83% proveniente de fontes renováveis (64,9% hídrica, 8,6% eólica, 8,4% biomassa e 1% solar), e uma política nacional de biocombustíveis ousada como a recém-lançada Renovabio”. Resta saber se utilizaremos nossas vantagens naturais para resgatar nossa indústria no contexto de uma Nova Economia, ou se continuaremos afogados em burocracia, insegurança jurídica, e incompetência política temperada com polarização desnecessária. Feliz 2021 a todos nós!
Referências
AIE (2020). Total energy supply (TES) by source, World 1990-2018. Disponível em: https://www.iea.org/data-and-statistics?country=WORLD&fuel=Energy%20supply&indicator=TPESbySource. Acessado em: 04 de novembro de 2020.

Bernardo A. Retomada (Verde)? Química e Derivados, Ano LV, nº 616. Disponível em: https://www.quimica.com.br/retomada-verde-abeq/
Castro Paes VJ. Projeto Avaliação do Potencial do Lítio no Brasil. Disponível em: http://www.cprm.gov.br/imprensa/Site/pdf/Clipping/apresentacaolitio.pdf
Furtado, MR. Hidrogênio é a chave para a economia de baixo carbono. Química e Derivados, Ano LV, nº 616. Disponível em: https://www.quimica.com.br/hidrogenio-e-a-chave-para-economia-de-baixo-carbono/
Hu, Zhiqiu, Yue Guo, Hongchang Jin, Hengxing Ji, e Li-Jun Wan. “A rechargeable aqueous aluminum–sulfur battery through acid activation in water-in-salt electrolyte”. Chem. Commun. 56, no 13 (2020): 2023–26. https://doi.org/10.1039/C9CC08415K.
Jentsch M, Trosta T, Sterner M. Optimal Use of Power-to-Gas Energy Storage Systems in an 85% Renewable Energy Scenario, Energy Procedia 46 (2014) 254 – 261.
LG Energy (2020). What time of the day and during the year does a solar system work? Disponível em: https://www.lgenergy.com.au/faq/did-you-know/what-time-of-the-day-and-during-the-year-does-a-solar-system-work. Acessado em: 09 de novembro de 2020.
Sykes J. How is Solar Energy used? Self-consumption explained. Publicado em 30 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.solarchoice.net.au/blog/solar-self-consumption-overview
Toledo IM, Filho DO, Diniz ASAC. Distributed photovoltaic generation and energy storage systems: A review. Renewable and Sustainable Energy Reviews, 14(1) pp 506-511, 2010. https://doi.org/10.1016/j.rser.2009.08.007.
Texto: André Bernardo
O AUTOR
André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP, com mestrado em Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos pela Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e Doutorado em Engenharia Química pela UFSCar. Trabalhou no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e em diferentes indústrias químicas. Atualmente é professor do departamento de Engenharia Química da UFSCar.
E-mail de contato: [email protected]
©QD Foto: Divulgação
ABEQ
A Associação Brasileira de Engenharia Química (ABEQ) é uma entidade sem fins lucrativos que congrega profissionais e empresas interessadas no desenvolvimento da Engenharia Química no Brasil. É filiada à Confederação Interamericana de Engenharia Química. Seu Conselho Superior, Diretoria e Diretoria das Seções Regionais são eleitos pelos associados a cada dois anos.
Mais informações: https://www.abeq.org.br/