Novo marco legal incentiva uso adequado de lodos residuais

Química e Derivados - Secador de lodo da Pieralisi consumirá biogás produzido na ETE de Bauru-SP ©QD Foto: Divulgação
Secador de lodo da Pieralisi consumirá biogás produzido na ETE de Bauru-SP

O novo marco regulatório do saneamento, sancionado em julho com a promessa de finalmente acelerar o processo de universalização dos serviços de água, esgoto e de resíduos sólidos do país, tem potencial para gerar benefícios a outras demandas ambientais adormecidas. Uma delas é a de tratamento e disposição de lodos de estações de tratamento de esgotos públicos e de efluentes industriais.

A expectativa de empresas com tecnologia e equipamentos direcionados a esse mercado é a de que o novo cenário incentive o uso de soluções mais ambientalmente corretas para os lodos, com foco principal em recuperação energética e reaproveitamento do lodo tratado como biofertilizante. Isso porque a nova regulação do saneamento prevê maiores exigências para o correto manejo dos resíduos, o que deve encarecer a destinação em aterros – opção hoje mais utilizada para esses passivos – e incentivar outras soluções.

Uma tendência que deve ser incentivada e viabilizada com o novo marco legal é a recuperação energética dos resíduos, incluindo os lodos das estações. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren), Yuri Shimtke, a nova regulação estabelece que todas as concessões em saneamento precisam passar por licitação, aberta a empresas públicas e privadas, para prazos de concessão de 30 anos. De acordo com ele, esse prazo longo tornará viável a estruturação de unidades de recuperação energética por meio de modelos de project finance, pelos quais o financiamento tem como garantia o fluxo de caixa dos projetos.

Para completar os benefícios do marco do saneamento, diz Schimtke, será possível usar a tarifa de água como garantia para os empréstimos, facilitando ainda mais as estruturações financeiras, por exemplo, de usinas de biogás com biodigestão de lodo, de waste-to-energy (incineração com geração de energia), de unidades de gaseificação, de preparação de combustíveis derivados de resíduos (CDR) para fornos de cimento ou para gerar vapor. “Todas estas tecnologias atendem demandas também de lodos de estações de tratamento”, disse. Ainda segundo o dirigente, outro ponto importante é o ordenamento na nova lei do saneamento que permite a constituição de consórcios de cidades para gerir os serviços, o que abrirá a possibilidade, por conta dos ganhos de escala, de se construir grandes centrais de tratamento.

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Química e Derivados - Estela: custo de colocar lodo em aterros tende a aumentar ©QD Foto: Divulgação
Estela: custo de colocar lodo em aterros tende a aumentar

Custo dos aterros – Com­partilha dessa visão sobre as novas perspectivas a presidente do Sindicato Nacional das Indústrias de Equipamentos para Saneamento Básico e Ambiental (Sindesam), da Abimaq, Estela Testa. Segundo ela, haverá uma tendência de aumento de custos para disposição de lodos municipais e industriais em aterros, já que o marco do saneamento impõe metas para as cidades montarem planos de gerenciamento de resíduos, o que significa maior cuidado e gastos com as operações. “Esse novo custo dos aterros vai ser repassado para os geradores de resíduos, o que favorece outras soluções”, disse.

A própria empresa dirigida pela presidente do Sindesam, a Pieralisi, que fornece sistemas de desidratação e secagem de lodo, já percebe o aquecimento dessa demanda. Além das cotações terem aumentado, segundo Testa, um sistema completo da empresa passará a ser empregado em 2021 em nova estação de tratamento de esgotos do DAE de Bauru-SP. O sistema, além da desidratação com decantadores, contempla um secador da Pieralisi que usará como combustível o biogás captado de digestor anaeróbico. O propósito é utilizar o lodo seco como biofertilizante.

O potencial para adotar soluções desse tipo, com foco na recuperação energética, é muito grande. Em um levantamento da Abren, a estimativa é a de que atualmente sejam gerados em torno de 4,3 milhões de toneladas por ano de resíduos sólidos oriundos da base seca do processo de tratamento de esgoto. Com a perspectiva de novos projetos por conta do novo marco legal, em poucos anos esse volume subiria para 9 milhões de toneladas, deduz o levantamento da associação.

Para Schmitke, se seguir as tendências dos países desenvolvidos, os lodos gerados no Brasil deixarão progressivamente de ser enviados para os aterros. Mas ele, ao contrário da presidente do Sindesam, acha que os lodos secos não devem ser empregados como biofertilizantes, como diz estar ocorrendo na Europa. Isso por conta dos riscos envolvidos com o alto nível de metais pesados e de contaminações por disruptores endógenos, principalmente derivados de medicações e hormônios presentes no esgoto e que permanecem nos lodos. Segundo Schmitke, na Alemanha, por exemplo, do total aproximado de 1,8 milhão de t/ano de lodo base seca, em torno de 65% são destruídos termicamente, sendo mais de 50% como substitutos de combustíveis fósseis.

Para o Brasil, na visão do presidente da Abren, o potencial maior também é para recuperação energética, mas com tecnologias que preparam o lodo para seu aproveitamento, por conta do baixo teor calorífico da base seca, alta carga de material mineral (cerca de 40%) e alta umidade, que demanda processos de desidratação e secagem. Uma tendência aí seria o uso dos lodos na geração de energia elétrica ou térmica utilizando processos de gaseificação em leito fluidizado.

Essa constituição do lodo requer a sua transformação em combustíveis derivados de resíduos (CDR), que é feita no Brasil em unidades de blendagem, que o misturam com outros resíduos para atender as especificações de fornos de cimento, que os utilizam no coprocessamento. O potencial apenas com lodos, segundo o levantamento da Abren, seria para substituir mais de 700 mil t/ano de petcoque, combustível fóssil das cimenteiras, e 1,7 milhão de toneladas de carvão mineral nas centrais térmicas de eletricidade, o correspondente a 1,4 mil GWh por ano.

Soluções – As perspectivas de uso das tecnologias mais avançadas ainda devem ser testadas diante da realidade do mercado de optar normalmente pela opção mais barata, que seria a destinação em aterros. Mas a tendência é de redução de custos, na medida em que as soluções começam a ser empregadas.

Os ganhos de escala devem fazer tecnologias ainda praticamente inéditas no país começarem a ser empregadas, caso por exemplo da gaseificação em leito fluidizado. E, do mesmo modo, a maior demanda promete aumentar o uso de soluções já utilizadas, como o coprocessamento de resíduos em fornos de cimento, que dosa nos blends de resíduos, entre outros tipos de rejeitos, o lodo de estações de tratamento de efluentes e esgotos.

Uma solução com potencial está sendo ofertada no Brasil pela empresa Ember Lion, de Curitiba-PR, que nacionalizou a tecnologia de reator de leito fluidizado com areia da suíça Raschka, utilizada em mais de cem plantas da Europa e Ásia para gaseificar principalmente lodos de ETEs.

O equipamento conta com câmara cilíndrica dividida em camadas, onde ocorre a reação. A primeira delas, na parte inferior, conta com o leito fluidizado, com areia incandescente, na qual o ar de combustão faz os rejeitos serem misturados com o leito. Nesta região, o excesso de ar é controlado de modo que as reações não sejam completas e que a temperatura seja inferior a 700ºC, para provocar a gaseificação, o que resulta na volatilização dos orgânicos, restando apenas o material inerte no leito. O lodo então é consumido e volatilizado e os detritos inorgânicos (5% a 10% do total) são eliminados na recirculação da areia.

Os voláteis seguem para a parte superior da câmara, para a combustão, com temperatura controlada pela injeção de ar e de água que circula em cavidades. Daí, os gases de combustão e as cinzas volantes sobem para a zona de pós-combustão, onde permanecem por no mínimo dois segundos para garantir a combustão completa, antes de saírem a uma temperatura média de 1.000ºC, para serem queimados em caldeira para gerar vapor, que poderá ser utilizado ou em processo industrial ou em turbina para gerar eletricidade.

Segundo o diretor da Ember Lion, Reges Dias, o reator em leito fluidizado foi projetado para operar com resíduos de baixa capacidade energética, lodos industriais e de tratamento de esgoto. A empresa é fruto de parceria com os suíços e a Biocal, fabricante nacional de caldeiras e responsável pela nacionalização de 95% dos componentes do sistema. Embora ainda não tenha fechado contrato, Dias revela que há projetos em maturação com grande possibilidade de serem fechados em breve. O ideal, afirma, é implantar o sistema para grandes escalas, para tratar de 80 t a 100 t por dia de lodo.

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Coprocessamento – Uma alternativa para a destruição de resíduos já utilizada há duas décadas no Brasil com potencial para aumentar sua participação no mercado de lodos é o coprocessamento em fornos de cimento.

Por essa solução, vários tipos de resíduos, como borras oleosas, lodos, materiais contaminados, pneus, e mais recentemente até resíduos sólidos urbanos, são misturados em blends por empresas especializadas para atingir as especificações de granulometria e poder calorífico e assim substituir o coque de petróleo como combustível em fornos de clínquer. Da mesma forma, resíduos com possibilidade de substituir as matérias-primas do cimento (cal, alumina, sílica e ferro) são também coprocessados, como lama de siderurgia, refratários usados, areia de fundição, gesso ou cinzas.

No Brasil, no último dado disponível da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), foram coprocessadas 1,2 milhão de t de resíduos (2018). Embora o lodo não tenha sozinho o poder calorífico necessário para entrar nos fornos como combustível, ele faz parte dos blends, principalmente os de origem industrial, que elevam o poder calorífico para pelo menos 4,5 mil kcal/kg. Já os lodos de estações de tratamento de esgoto podem vir a ser interessantes caso seja feita a secagem para remover o alto teor de umidade e se o transporte for facilitado pela proximidade entre fornos e ETEs.

A Renova, empresa especializada na preparação de resíduos para as cimenteiras, tem utilizado em seus blends (formulados com resíduos de mais de 1,5 mil clientes) lodos de estações de tratamento de efluentes industriais. Segundo seu diretor de operações, Christiano Baccin, do total entregue para fornos de cimento no ano passado, 80 mil toneladas de CDRs, por volta de 10% eram lodos industriais. Neste ano, a previsão é de que o volume chegue a 90 mil t, com mesmo percentual de lodos.

Segundo Baccin, os lodos, mesmo depois de desidratados pelas indústrias, vêm com umidade. Para atender os limites das cimenteiras de teor de líquidos, geralmente de 20%, o procedimento é misturar com vários outros tipos de resíduos mais secos, como materiais triturados e contaminados, até chegar aos parâmetros físico-químicos exigidos por cada um dos 15 fornos de cimento para os quais a Renova destina os CDRs.

As únicas restrições ocorrem com lodos galvânicos, por conta do teor de metais, prejudiciais aos fornos, e também com lodos resultantes de processos industriais com alto teor de cloro, também indesejados nos fornos de clínquer. Neste último caso, observa Baccin, houve até clientes que fizeram mudanças em seus processos para permitir a destinação de seus lodos com essa tecnologia. Foi o caso de uma indústria calçadista do Sul do país, que mudou a tinta de base cloro por outra de base polímero sintético para permitir a destinação do seu lodo no coprocessamento.

Esse caso no setor calçadista, para o diretor, ilustra a mudança que deve ocorrer com mais frequência nos próximos anos. Para ele, isso se deve a motivações ambientais e de custo. Ao se fazer uma análise de longo prazo, comparando a destinação em aterro, com custo de monitoramento e manutenção durante 20 anos, e ainda da responsabilidade do gerador depois do encerramento da vida útil, Baccin revela que muitos clientes acabam optando pelo coprocessamento, que destrói o passivo, evitando qualquer risco de responsabilização futura.

Com matriz em Arujá-SP, a Renova conta com unidades de blendagem em Farroupilha-RS e Ijaci-MG. A empresa tem acordos com as cimenteiras Intercement, Votorantim, Holcim Lafarge, Itambé, Supremo e Cimento Nacional. Esse portfólio permite que sejam feitos blends para 15 fornos, de Belo Horizonte até o Rio Grande do Sul. Segundo Baccin, está nos planos expandir a operação para o Nordeste.

A tendência de aumento da participação do coprocessamento de resíduos em forno de cimento, aliás, recebeu o reforço recente de uma nova resolução Conama (499), publicada em 6 de outubro e que revogou uma antiga, a 264/1999. Em vigor, a nova resolução moderniza a atividade, permitindo que mais tipos de resíduos sejam destruídos. O destaque ficou por conta da regulação referente ao coprocessamento de resíduos sólidos urbanos, ou seja, a permissão por normas bem definidas de se utilizar CDRs com lixo urbano nos fornos, que começa a ocorrer em alguns projetos no Brasil.

Além disso, a nova resolução deu permissão para que os fornos das cimenteiras recebam medicamentos, materiais vencidos ou fora de especificação. Também foram liberados resíduos de saúde que tenham passado por autoclavagem ou descontaminação biológica. Outras modernizações são referentes a monitoramento de emissões e redução dos limites de emissão de material particulado e inclusão de limites para dioxinas e furanos, SOx e NOx. Com a novidade, a atividade fica disciplinada para todo o país, seguindo o que alguns estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, já fazem há alguns anos por terem legislações próprias.

Projetos na BRK – Embora o custo de disposição de lodos em aterros sanitários seja o maior concorrente das soluções mais ambientalmente corretas para os lodos, algumas empresas de saneamento, grandes geradoras nos seus processos de tratamento, começam a se adiantar e a buscar as melhores práticas.

A BRK Ambiental, por exemplo, grupo com a concessão de saneamento de mais de cem cidades no país, atendendo 15 milhões de pessoas, tem vários projetos em andamento. De acordo com o diretor de engenharia, Claudio Monken, as metas principais são transformar o lodo em produtos energéticos (CDR ou para biogás) ou como fertilizantes e também promover a secagem solar do lodo, para reduzir seu custo logístico e facilitar seu uso como subproduto de CDR. Em 2021, aliás, já estará em operação a primeira planta para secagem solar – com estufas, ventilação forçada e manipulação dos lodos – no interior paulista.

Química e Derivados - Meio Ambiente - Novo marco legal incentiva uso adequado de lodos residuais ©QD Foto: Divulgação
Projeto da BRK com a Lodologic prevê transformar lodo em fertilizante

Entre os projetos, há um em parceria com a empresa Lodologic, que permite transformar os lodos de ETEs em fertilizantes agrícolas. O sistema apresenta uma rota de secagem e beneficiamento para o lodo desaguado das ETEs (normalmente entre 16% e 22% de teor de sólidos), resultando em um lodo final seco (>80% de sólidos) com valor comercial e potencial técnico para uso agrícola. No subproduto final, são adicionados aditivos (compostos químicos à base de nitrogênio, fósforo e potássio), de acordo com o tipo de plantio agrícola que será aplicado.

O projeto conta com uma etapa de adição de reagentes oxidantes ao lodo, para garantir a secagem “de dentro para fora”, como consequência das reações químicas exotérmicas, e secadores térmicos do tipo paddle dryer para finalizar a secagem de “fora para dentro”. O material resultante desse processo é um produto granulado, com baixos valores de patógenos, respeitando-se a resolução Conama 375 para aplicação em solos de lodos de ETEs.

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O sistema é dividido em três módulos: zona de alimentação e dosagem do lodo; zona de processo de secagem e classificação granulométrica; e zona de geração de vapor e tratamento e água.

A primeira foi planejada para recebimento e estocagem do lodo desaguado. A zona de secagem e classificação granulométrica promove a adição dos químicos e aditivos, a secagem térmica do lodo, o tratamento dos gases de evaporação gerados e, por fim, uma seleção granulométrica do lodo seco para identificar lodos ainda úmidos que deverão retornar ao início do processo de secagem. A zona de geração de vapor é responsável por promover o tratamento de água e a geração do vapor utilizado na etapa de secagem.

O projeto piloto foi instalado na ETE Águas da Serra, em Limeira-SP, por um período de 28 dias, em que desaguavam cerca de 2 t/dia de lodo. Os resultados atingidos mostraram ser possível produzir um lodo final que atenda às exigências do Conama e às necessidades requeridas pela agricultura para uso como fertilizantes.

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