Meio Ambiente – Saneamento avança com investimentos privados

Investimento privado cresce para atingir meta de saneamento

Mais de um ano desde a sanção presidencial do novo marco regulatório, a Lei 14.026/2020, em 15 de julho do ano passado, o setor de saneamento básico dá mostras de que começa a se mexer, depois de longo período de estagnação.

E o termômetro maior para essa mudança é o aumento gradativo da participação privada, considerada a rota mais viável e principal aposta para se chegar à universalização dos serviços até 2033, meta da nova lei.

Segundo levantamento da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços de Água e Esgoto, a Abcon, em 2020 as concessionárias privadas fecharam o ano com 191 contratos firmados, de concessões plenas e parciais até PPPs e subdelegações, abarcando 389 cidades.

Para a entidade, hoje o setor privado responde direta ou indiretamente por 17% da população brasileira, ou 35,9 milhões de pessoas.

O novo fôlego do setor privado tem influenciado positivamente os investimentos totais do saneamento pelo menos desde 2019, já na expectativa da iminente aprovação do novo marco, efetivada no ano seguinte.

De acordo com estudo da Abcon, o recém-lançado Panorama da Participação Privada no Saneamento 2021, foram investidos em 2019 pelos operadores do setor (públicos e privados) o total de R$ 14,8 bilhões no país, sendo que 33% (R$ 4,8 bi) foram privados.

Em 2018, do total investido de R$ 12,3 bilhões, 21% eram das operadoras privadas, ou R$ 2,5 bilhões.

Na análise da superintendente técnica da Abcon, Ilana Ferreira, isso significa que de 2018 para 2019 os investimentos executados pelos municípios e estados caíram 4%, enquanto os aportes dos operadores privados quase dobraram no mesmo período.

Química e Derivados - Investimento privado cresce para atingir meta de saneamento ©QD Foto: iStockPhoto
Ilana Ferreira, superintendente técnica da Abcon

“Esse comportamento dos agentes privados gerou um aumento do total do investimento em saneamento [que inclui ainda prestadores de serviços] de R$ 13,1 bilhões para R$ 15,6 bilhões em 2019”, disse.

Além do ambiente regulatório favorável, o andamento do programa de leilões estruturados pelo BNDES para a desestatização do setor é outro fator que já influencia o aumento dos investimentos.

Quatro foram realizados no último ano: das companhias Casal, em Alagoas, Sanesul, do Mato Grosso do Sul, Cedae, do Rio de Janeiro, e do município de Cariacica, no Espírito Santo.

Com eles, o percentual passou dos 15% de atendimento do fim de 2020 para os 17% atuais, sendo que o valor total das outorgas dos certames ultrapassou R$ 20 bilhões e as concessões atrairão investimentos superiores a R$ 30 bilhões em capex.

Leilões – Na Casal, a licitação vencida pela BRK Ambiental envolve a concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da região metropolitana de Maceió, que promete levar saneamento a 13 cidades e a 1,5 milhão de pessoas, em um investimento previsto de R$ 2 bilhões apenas nos seis primeiros anos.

O investimento total será de R$ 2,6 bilhões para 35 anos de concessão, sendo que a Casal permanece como responsável pela produção de água para a Região Metropolitana de Maceió. O leilão de setembro de 2020 gerou outorga de R$ 2 bilhões ao estado.

No Espírito Santo, o leilão vencido pela Aegea em outubro foi para a PPP da companhia estadual de saneamento do estado, a Cesan, para realizar a coleta e tratamento de esgoto de Cariacica e Viana, na região metropolitana de Vitória.

Os serviços serão universalizados em até dez anos e os investimentos atingirão R$ 580 milhões em 30 anos de contrato, beneficiando 423 mil pessoas.

No Mato Grosso do Sul, foi fechada PPP da parceria entre a companhia Sanesul e o grupo Aegea, cuja operação vai abranger 68 municípios sul-mato-grossenses e inclui investimentos de R$ 3,8 bilhões em 30 anos de contrato, beneficiando 1,7 milhão de pessoas.

Em abril deste ano foi realizado o mais importante leilão, o da fluminense Cedae, que arrecadou R$ 22,6 bilhões, compartilhados entre o estado e os municípios que participaram da licitação.

Com ágio de 134% sobre a outorga mínima prevista para três blocos com 29 municípios, o valor será revertido em investimentos pelo governo estadual e pelas prefeituras para atender 11 milhões de habitantes.

Há expectativa de injeção de R$ 46 bilhões com os projetos, sendo que favelas não urbanizadas do Rio de Janeiro receberão investimento mínimo de R$ 1,9 bilhão em abastecimento de água.

Os níveis atuais de atendimento da Cedae atingem apenas 88% da população com acesso a abastecimento de água e somente 37% com acesso a coleta de esgoto.

A Cedae continuará a ter receita com a venda de água bruta, uma das características dos modelos de privatização criados pelo BNDES.

Ritmo continua – O BNDES organizou mais leilões, por meio de sua chamada fábrica de projetos para infraestrutura, para ocorrer ainda neste ano e meados do próximo.

Outros já estão prontos, mas estão no aguardo de decisões de seus respectivos governos.

Ainda em setembro, ocorre um para a concessão plena de serviços na área urbana de 16 municípios do Amapá, que terá lances para combinar tarifa menor e maior valor de outorga.

Com coleta muito baixa de esgoto, de apenas 7,1% da população, trata-se do primeiro grande leilão de saneamento da região Norte e os investimentos previstos são de R$ 3 bilhões em 35 anos de concessão.

Em Alagoas ocorrerá uma nova concessão, prevista para o primeiro trimestre de 2022, com dois novos blocos de municípios e investimentos previstos de R$ 3 bilhões para atender 2,2 milhões de pessoas.

Também no Rio de Janeiro terá continuidade o processo de privatização da Cedae, com o bloco 3, a ser leiloado até o final de 2021, que inicialmente envolvia seis municípios e uma região da capital, mas que deve ter adesão de mais cidades.

A estimativa é a de que a licitação viabilize mais R$ 3 bilhões de investimentos para o estado.

Além desses leilões já certos, outros estão em modelagem ou com prazos indefinidos.

A licitação para concessão de serviços de saneamento da Paraíba está em estruturação e se volta para duas áreas, o litoral e o interior, com investimento estimado de R$ 4 bilhões.

Também o leilão para a concessão dos serviços hoje prestados pela Corsan no Rio Grande do Sul aguarda definição sobre o modelo que será adotado, se privatização da companhia, concessão dos serviços ou PPP.

Esse processo pode demandar R$ 3 bilhões de investimento.

Ainda estão em debates os processos licitatórios da capital gaúcha, Porto Alegre, que estava previsto para 2021 e foi adiado, mas que já tem os estudos do BNDES concluídos e deve envolver R$ 2,2 bilhões.

Da mesma forma, o Ceará conta com projeto de concessão desenhado pelo BNDES para a capital Fortaleza e a região do Cariri, com expectativa de o edital ser lançado em 2021 e com previsão de R$ 6,4 bilhões de investimento.

Leilões em Rondônia e Acre, também feitos pelo banco, dependem da adesão de suas respectivas capitais para serem confirmados.

Regionalização – Uma das determinações do novo marco do saneamento foi a de que os governos estaduais, até 15 de julho deste ano, estruturassem blocos regionais para organizar a prestação dos serviços de água e esgoto de forma compartilhada entre os municípios.

Segundo levantamento da Abcon, do total dos estados, onze já aprovaram suas regionalizações com projetos de leis, criando 63 blocos no total que podem se tornar concessões privadas ou públicas.

Os demais estados se encontram em estágios diferentes do processo, sem ter ainda aprovado as divisões, mas já definiram mais 47 lotes, ampliando o universo para 110 lotes.

Essa estruturação, mesmo que não seja toda ela abarcada pelo setor privado no futuro, tem força de ampliar bastante a participação das concessionárias por conta das licitações e leilões que devem ser implementados.

Depois que o prazo para a criação dos blocos terminou, a próxima etapa, segundo o decreto 10.588/2020, é a decisão de os municípios aceitarem ou não a adesão às unidades regionalizadas até 31 de março de 2022.

Isso, para a Abcon, é um desafio e demanda mecanismos de incentivo, já que o município é o titular dos serviços e tem o direito de escolha.

Nos estados em que os blocos não forem formalizados, caberá ao governo federal estabelecer as divisões por cidades.

Química e Derivados - Investimento privado cresce para atingir meta de saneamento ©QD Foto: iStockPhoto
Percy Soares, diretor-executivo da Abcon

Mesmo que alguns estados não consigam se entender, a perspectiva é a de que os investimentos privados ganhem cada vez mais força.

Não à toa, a previsão da Abcon, segundo revelou o diretor-executivo Percy Soares, é a de que o setor atenda pelo menos 40% da população brasileira até 2030.

E os investimentos devem surpreender. Já em 2019, também de acordo com a Abcon, as concessões privadas de saneamento alcançaram 33% do total investido pelas companhias do setor, mesmo estando presentes em apenas 7% dos municípios brasileiros.

Foram aplicados R$ 4,8 bilhões, diante de um investimento total de R$ 14,8 bilhões, considerando todas as operadoras, públicas ou privadas .

Judicialização – Neste primeiro ano do marco do saneamento, embora o saldo seja positivo e com bons sinais para médio e longo prazo, surgiram também algumas disputas judiciais, provocadas por brechas na lei e aproveitadas por descontentes com o viés privatizante.

Uma dessas querelas se deu depois da publicação do decreto 10.710/21, de 31 de maio, que por determinação do marco legal estabeleceu metodologia de comprovação de capacidade econômico-financeira para as operadoras cumprirem as metas de universalização.

O decreto exige a comprovação tanto de operadoras públicas, que prestam serviços por meio de contratos de programa (sem licitação), como dos privados, que se submetem a licitações.

Em uma primeira fase, será feita uma análise contábil da situação financeira, a partir dos balanços auditados dos últimos cinco anos, levando-se em consideração os ativos, passivos, receitas e a própria capacidade de investimento, entre outros fatores.

O prazo para a entrega dos documentos termina no final do ano e, até 31 de março de 2022, a agência reguladora local decidirá sobre a efetividade da comprovação de boas condições financeiras.

Após isso, as companhias precisarão ainda demonstrar condições para custear os futuros empreendimentos, com recursos próprios ou de financiamentos, com apresentação inclusive de estudos de viabilidade financeira para atingir a universalização no prazo da lei, com plano de captação de dinheiro.

Essa etapa, que permite a constituição de sociedade de propósito específico (SPE) para se aplicar planos com base na regionalização das cidades, vai até o fim de 2022.

Para os operadores públicos, com contratos de programa, é preciso incluir meta para a universalização. E caso estes não comprovem capacidade econômico-financeira, seus contratos passarão a ser considerados irregulares.

A judicialização, por parte de companhias estaduais, visa contestar essas exigências comprobatórias. Para os reclamantes, trata-se de uma forma velada de excluir as estatais do mercado, já que boa parte delas não conta com boa saúde financeira.

São esperadas muitas ações das companhias contra as novas determinações e uma das alegações é o prazo, considerado curto demais para a estabilização das condições financeiras das empresas, muitas delas depauperadas por problemas antigos de gestão.

Esse prazo curto tem muita relação com o atraso de mais de sete meses da publicação do decreto regulamentador, segundo disse o advogado especializado, Fernando Vernalha, em webinar da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes), que considera o período insuficiente para as companhias estaduais prepararem documentos e fazerem possíveis adequações para comprovar capacidade financeira.

Para Vernalha, outra questão que pode ser contestada é o decreto não ter incluído, como maneira de compensar o possível desequilíbrio financeiro das companhias, a ferramenta de extensão de prazo para a universalização.

“Esta é uma maneira comum e menos onerosa para a população de buscar o reequilíbrio financeiro desses contratos”, disse.

O advogado também aponta que a União incorre em inconstitucionalidade ao usurpar a competência dos titulares locais, os municípios, ao impor uma norma de reequilíbrio econômico-financeiro de contrato.

“A competência da União é dar diretrizes do saneamento e de normas gerais de contratação administrativa e não de entrar nesses pormenores dos contratos entre dois entes federativos”, alertou.

Investimentos – Ainda com déficits elevados em saneamento, com 48% da população sem atendimento de esgoto (101 milhões de pessoas) e 16% sem abastecimento de água (34 milhões), o setor demanda também elevados investimentos para a universalização dos serviços.

Segundo um estudo da consultoria KPMG, feito sob encomenda da Abcon, serão necessários R$ 753 bilhões em investimentos até 2033 para universalizar os serviços.

Desse total de investimentos previstos, R$ 498 bilhões serão para expansão da rede e R$ 255 bilhões para recuperação da depreciação das redes e ativos existentes.

Por regiões, a Norte é a mais carente do país e demanda 9% do total dos investimentos previstos, percentual menor por conta da menor densidade populacional da região.

O Amazonas e o Pará são os mais necessitados de recursos, com R$ 10 bilhões e R$ 8 bilhões, respectivamente.

As maiores demandas são relativas às redes de distribuição de água e adutoras e, com destaque, às redes coletoras de estações de tratamento de esgoto, que precisam duas vezes e meia mais recursos, segundo levantou o estudo da KPMG/Abcon.

O Centro-Oeste precisa de R$ 52 bilhões para a universalização, sendo que o esgotamento sanitário representa 75% da demanda total. Goiás e Mato Grosso são os mais necessitados de investimentos em tratamento de esgoto, com R$ 18,2 bilhões e R$ 12,1 bilhões respectivamente e o Distrito Federal tem a menor demanda, pois já tem 85% de cobertura do serviço.

A região Sul, apesar de desenvolvida economicamente, tem alta demanda, de R$ 89 bilhões, sendo o Rio Grande do Sul o mais defasado, com necessidades de R$ 44,9 bilhões.

O maior gargalo é o esgotamento sanitário, que precisa de 87% do total de investimentos previstos para a universalização.

O Nordeste, em valores absolutos, é o segundo mais necessitado de aportes, respondendo por 27% do total, ou seja, R$ 136 bilhões, perdendo apenas para o Sudeste, com R$ 176 bilhões de previsão.

Nesta última região, apesar de ter locais avançados no tema, como a capital de São Paulo, que tem boa cobertura de água e esgoto (96% e 89%), tem alta demanda por concentrar a maior população do país em seus quatro estados.

Para a Abcon, os efeitos na economia com esses investimentos serão muito grandes.

Ao usar um cálculo de efeito multiplicador (para cada R$ 1 investido gera-se R$ 2,80), a entidade acredita que nos próximos 12 anos serão injetados na economia brasileira R$ 1,4 trilhão, com a geração de mais de 14 milhões de empregos ao longo do período dos investimentos e quase R$ 90 bilhões em arrecadação tributária.

Apenas com os últimos leilões, entre o segundo semestre do ano passado e o primeiro deste, a estimativa é a de que sejam gerados 700 mil empregos diretos e indiretos. Apenas no Rio de Janeiro, com a concessão da Cedae, seriam 400 mil empregos.

Os efeitos multiplicadores são principalmente na construção civil, em máquinas e equipamentos, na indústria de plásticos, de serviços e tecnologia. Mais um motivo para a sociedade torcer pela universalização do saneamento.

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