O setor de saneamento entrou em uma espiral ascendente de investimentos, desde a sanção do seu novo marco legal, a lei 14.026, de julho de 2020, que deve se manter pelo menos até 2033, ano estabelecido como meta para a universalização dos serviços de água e esgoto.
A expectativa da Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) é a de que nesse período sejam demandados R$ 753 bilhões em investimentos.
“O ponto essencial é que todo esse investimento está acontecendo e, o mais importante, contribuindo substancialmente na redução da desigualdade no Brasil e na retomada do crescimento econômico”, comemora Estela Testa, presidente do Sindicato Nacional das Indústrias de Equipamentos para Saneamento Básico e Ambiental (Sindesam), ligado à Abimaq/Sindimaq.
Conforme a executiva, a maior demonstração de que o ritmo da universalização está dentro do estabelecido – 99% da população com acesso à água e 90% com tratamento e coleta de esgoto – é o volume de investimentos registrado desde a sanção da lei.
“Foram realizados, até o primeiro trimestre de 2022, 16 leilões, envolvendo cerca de R$ 46 bilhões em investimentos estimados, que movimentam a economia do país”, afirma Estela.
Para ela, o lado ainda mais positivo é a nova onda de investimentos ter feito com que fabricantes e fornecedores sejam permanentemente desafiados, buscando melhorias ou alternativas tecnológicas, com desempenho otimizado no tratamento de água e esgoto.
Estela: valorização do lodo de esgoto abre novas perspectivas
“É uma oportunidade de crescimento junto com a infraestrutura do cenário nacional”, diz.
Para se ter uma ideia do ritmo que o mercado tomou, com a aprovação do novo marco, as operadoras privadas de serviços de água e esgoto passaram de uma participação de 6% dos municípios em 2020 para hoje atenderem quase 10% do total, em 509 municípios, dos quais 68% são considerados de pequeno porte, com até 50 mil habitantes, desmitificando ainda a ideia de que os grupos privados não têm interesse em cidades menores, que não seriam rentáveis.
Em apenas um ano do marco legal do saneamento, em 2021, o número de municípios que passou a ser atendido por operadores privados aumentou em 31%, com a inclusão de 120 cidades, chegando ao patamar atual de cerca de 31,6 milhões de pessoas atendidas, em estados como Alagoas, Amapá, Ceará, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.
Segundo levantamento da Abcon, mesmo com apenas 10% dos municípios, os investimentos das concessionárias privadas já representam 16% do total investido pelas companhias do setor. E os aportes são mais intensos durante os primeiros anos de concessão, o que faz com que, em média, o atendimento de coleta de esgoto passe de 33% nos primeiros cinco anos de concessão para 62% entre o quinto e o décimo anos.
Os grupos privados de maior destaque são a Aegea, Iguá, Saab e BRK Ambiental, sendo a maior concessão a do Rio de Janeiro, dividida por blocos, vencidos por Aegea, Iguá e Águas do Brasil (Saab).
28 leilões – A análise otimista é reforçada com a perspectiva de curto prazo, que contempla, também conforme estimativas da Abcon, mais 28 leilões a serem realizados entre este ano e 2023, com investimentos da ordem de R$ 25 bilhões, que envolvem algumas concessões estaduais e várias municipais, para atender 16,5 milhões de habitantes.
Entre os vários certames, os destaques para ajudar a se aproximar da meta nacional de universalização são leilões estaduais previstos até 2023 que devem agregar mais 10 milhões de pessoas no atendimento dos novos operadores privados. Haverá a PPP do Ceará, para concessão do esgotamento sanitário, no valor estimado de investimentos de R$ 7 bilhões e que visa atender 4,2 milhões de pessoas no estado.
Além disso, está prometida para ocorrer ainda neste ano a privatização da estatal gaúcha, a Corsan, que envolve R$ 4 bilhões em investimentos para ofertar serviço pleno de água e esgoto para 2,4 milhões de habitantes.
Ainda no campo das concessões maiores, haverá também leilão de concessão de água e esgoto na Paraíba, com investimentos estimados em R$ 6 bilhões, com atendimento a 2,29 milhões de pessoas.
Outros estados nordestinos, como Sergipe, também prometem definir até o próximo ano seus leilões para água e esgoto, e Alagoas, depois de já ter concluído duas concessões em blocos do estado, de sua companhia Casal, vai lançar terceiro lote em leilão do bloco C até 2023.
Mas de forma mais pulverizada, porém firme, as cidades também se movimentam. É o caso de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, que promete retomar o certame da PPP de água e esgoto com investimento estimado de R$ 2,17 bilhões que foi adiado no começo do ano pela prefeitura.
Além disso, haverá leilões em cidades do Mato Grosso (Brasnorte, Campo Novo do Parecis), em Rondônia (Cerejeiras, Porto Velho, São Miguel do Guaporé, São Francisco do Guaporé) e na Bahia, em Brumado, de investimento de R$ 142,8 milhões, para conceder os serviços de água e esgoto para 67,2 mil pessoas.
Entram também na lista municípios de Tocantins (São Domingos do Araguaia), Santa Catarina (Palhoça e Capivari de Baixo), Piauí (Floriano), Minas Gerais (Extrema, Nepomuceno, Santa Maia de Itabira) e Pará (Pau D´Arco).
Apesar de o setor privado ser o motor dos novos investimentos, na opinião de Estela Testa, o setor público também merece atenção, porque ainda há companhias estaduais que movimentam o setor com várias obras e contratos de serviços e manutenção.
Para a executiva, algumas empresas públicas continuam a ser bastante relevantes para gerar demanda aos fornecedores. Os casos principais são a paulista Sabesp, a paranaense Sanepar e a mineira Copasa, hoje as três maiores estatais, com planos de investimentos, respectivamente, de R$ 23 bilhões, R$ 9 bilhões e R$ 7 bilhões até 2026.
Oportunidade no lodo – Mesmo com o cenário de bons investimentos para o País, Estela Testa, também CEO da Pieralisi, fornecedora de equipamentos de separação e secagem de lodo, chama a atenção que o cenário mundial desfavorável tem sido um desafio para fabricantes e fornecedores do setor de saneamento.
“A alta do preço do aço de mais de 60% nos últimos anos, dos componentes elétricos e da mão de obra, são fatores que influenciam diretamente o fabricante de máquinas, prazos de entrega, obras e consequentemente o consumidor final”, afirma.
Mas, segundo ela, junto com os desafios aparecem oportunidades. Um exemplo é provocado pelos problemas de abastecimento nacional de fertilizantes para o setor agrícola, dependente de importações.
De acordo com Estela, isso abriu uma oportunidade enorme na utilização dos lodos de esgoto na complementação desse fertilizante, uma vez que o lodo é rico em nutrientes para o solo. “Já possuímos tecnologia e vários casos espalhados no Brasil para transformar o lodo em biossólidos classe A”, completa.
Compartilha dessa opinião de aproveitar os lodos de ETE o presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren), Yuri Schmitke. Mas, para ele, além dos biofertilizantes, o imenso potencial nacional é no aproveitamento energético de resíduos sólidos da base seca do processo de tratamento de esgoto.
Segundo Schmitke, há uma estimativa de que aproximadamente 0,1% da massa do esgoto sanitário coletado seja de resíduos sólidos. Com base nisso, a geração no País é em torno de 4,3 milhões de toneladas de lodos secos de ETE. Além disso, segundo cálculo da Abren, com a implantação de novos projetos decorrentes do marco do saneamento de 2020, o potencial superaria as 9 milhões de t desses resíduos.
Para o dirigente setorial, em países desenvolvidos há uma tendência progressiva de proibir o envio de lodos de ETE para aterros, mas do mesmo modo há restrições de eles serem utilizados como adubos de solos, em razão do nível de metais pesados, de bactérias danosas ao meio ambiente e de residuais de medicamentos (principalmente antibióticos e hormônios).
“A solução ambientalmente mais adequada deve ser a destinação deste lodo a um processo de secagem e posterior destruição térmica da parcela orgânica, com aproveitamento de seu potencial energético”, diz.
Apesar disso, observa o conselheiro da Abren e diretor da consultoria W4 Resources, Francisco Leme, o lodo de ETE no Brasil tem, no geral, uma faixa de 40% de material mineral em sua base seca.
Também com alta umidade, o resultado é que ele tem baixo poder calorífico. Isso obriga que o lodo seja misturado com outros resíduos, em unidades especiais de blendagem, para ajudar a constituir o chamado combustível derivado de resíduos (CDR).
A partir daí, os CDRs são empregado em coprocessamento em fornos de cimento, substituindo combustíveis fósseis, atividade consolidada e em expansão no Brasil. Além disso, eles também são usados em caldeiras, para geração de vapor ou eletricidade, alimentando turbinas a vapor (aplicação ainda em desenvolvimento no Brasil).
Essa destinação do lodo para entrar como parte da formulação de CDRs é adotada em vários países da Europa. Segundo Leme, na Alemanha, das quase 1,8 milhões de t/ano de lodo gerado (base seca), em torno de 65% são destruídos termicamente, sendo que mais de 50% destes são utilizados como substitutos de combustíveis fósseis. A situação é similar em diversos outros países que baniram a destinação do lodo para aterros.
Por conta disso, causou surpresa na Abren o fato de o Estado de São Paulo ter proibido o uso de lodo de esgotos e de efluentes industriais (físico-químicos ou biológicos) em CDRs, depois que foi publicado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, em dezembro de 2021, a resolução Sima 145, que estabelece procedimento para análise de processo de licenciamento de atividade de preparo de CDRs perigosos para coprocessamento em fornos de clínquer.
No caso dos lodos de esgoto, a proibição se dá por conta de artigo da resolução que proíbe o uso de resíduos na composição de CDRs com poder calorífico abaixo de 1.800 kcal/kg. Isso porque o lodo de esgoto tem menos do que esse poder calorífico. Já para lodos de efluentes líquidos industriais a proibição é direta, com restrição a eles por serem considerados pela nova resolução, junto com outros resíduos, como os organoclorados persistentes.
“São Paulo, com essa medida, está na contramão do que ocorre no mundo”, afirma Yuri Schmitke, ressaltando que os demais estados continuam a ser autorizados a usar esses resíduos, seguindo a resolução Conama 499/2020, que disciplina o licenciamento da atividade de coprocessamento de resíduos em fornos de clínquer.
Para expandir a possibilidade de recuperação energética dos lodos de ETE, porém, Schmitke admite que há desafios no Brasil, por conta do baixo poder calorífico da base seca e alta carga de material mineral. E o outro desafio é reduzir a umidade, o que pode ser feito com filtragem mecânica, flotação química, adensamento biológico e até com energia solar.
Mas há muitas tecnologias térmicas consideradas para o tratamento dos lodos e amplamente empregadas no mundo. Além do coprocessamento em fornos de cimento a partir de blendagem de resíduos, há a biossecagem (que transforma o lodo em CDRs), a digestão anaeróbia para geração de biogás/biometano e outras mais específicas, como a da suíça Raschka, representada no Brasil pela empresa Ember Lion, de Curitiba-PR, que nacionalizou a solução já em testes em algumas companhias de saneamento.
Empregada em mais de 160 plantas na Europa e Ásia, o processo é de leito fluidizado para gaseificação dos lodos de ETEs, que conta com reator em formato de câmara cilíndrica dividida em camadas, onde ocorre a reação. O reator em leito fluidizado foi projetado para operar com resíduos de baixa capacidade energética, lodos industriais e lodo das ETEs.
O equipamento suíço é dividido por duas câmaras cilíndricas sobrepostas em reator. A primeira, na parte inferior, é onde os rejeitos são aquecidos em leito fluidizado de areia incandescente, onde todo o material orgânico é volatizado, deixando apenas como rejeito material mineral inerte.
Os voláteis seguem para a segunda câmara, no topo do reator, e entram em combustão. Os gases superquentes resultantes da combustão seguem para uma cavidade com paredes d’água, equivalente a um sistema de caldeira, na qual a energia térmica é transferida para o lado água/vapor, podendo então ser utilizada em processos industriais ou em turbinas para geração de energia elétrica.
A Ember Lion é fruto de parceria entre os suíços da Raschka e a Biocal, fabricante nacional de caldeiras e responsável pela nacionalização de 95% dos componentes do sistema.
Embora ainda não tenha fechado contrato, há projetos em maturação com grande possibilidade de serem fechados em breve. A situação ideal para uso da tecnologia, segundo seu diretor, Reges Dias, é implantar o sistema para grandes escalas, para tratar de 80 t a 100 t por dia de lodo.
Já em coprocessamento em fornos de cimento – solução que no Brasil conta com 40 fornos licenciados para operar com resíduos e mais de 50 unidades de blendagem de resíduos – há um potencial, segundo a Abren, de substituir 700 mil t/ano de petcoque no País com uso apenas de lodos. O petcoque, além de ser combustível fóssil, precisa ser importado para uso pela indústria cimenteira.
Misturados a vários outros resíduos industriais como blends, além de solos contaminados, os lodos de estações de tratamento de efluentes têm ajudado a atividade de coprocessamento a se desenvolver cada vez mais no País.
Desde 1996, quando os primeiros fornos passaram a coprocessar resíduos, a começar por pneus inservíveis, já foram destruídos nos fornos de cimento 22,5 milhões de toneladas de resíduos no País, segundo levantamento da consultoria W4Resources.
Os lodos industriais e de esgoto estão dentro da participação dos CDRs de resíduos industriais, correspondentes a 6 milhões de t. Outros 8 milhões de t são de resíduos de biomassa, 4 milhões de t de pneus, 4,5 milhões de t de resíduos com potencial para substituição de matérias-primas.
Pelo estudo, durante esse período foram substituídas 11 milhões de t de petcoque, evolução que faz hoje a indústria cimenteira, com mais de 40 fornos licenciados para a atividade, substituir 28% da entrada de combustível fóssil nos fornos com as alternativas renováveis.
A meta nacional é chegar a 55% em 2050, segundo acordo setorial liderado pela Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP).