Os primeiros sinais do novo governo federal para o gás natural indicam prováveis mudanças de rumo.
Parte dos sinais são analisados como positivos e outros revelam potencial para causar incertezas e um certo temor no mercado consumidor do insumo.
Os sinais positivos apareceram logo no discurso de posse do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que deu ao gás natural (ao lado da biomassa) papel de destaque na meta de transição energética do País, por conta da sua baixa emissão de carbono e potencial de desenvolver tecnologias nacionais.
A impressão foi ainda mais positiva quando o ministro chamou a atenção para o fato de apenas 52% do gás natural produzido no Brasil ser aproveitado, “perdendo-se o resto com reinjeções e queimas; e mesmo assim continuamos importando GNL a preços estratosféricos”, criticou Silveira.
O caminho para a revalorização do gás natural, segundo o ministro, passaria pela democratização do acesso para toda a cadeia industrial e para as residências, dando a entender claramente que pretende aumentar a produção do gás nacional.
A sinalização de aumento do aproveitamento do gás hoje reinjetado em poços talvez tenha até motivado o fato de, dias depois à posse, em 18 de janeiro, oito entidades empresariais, entre elas a Abiquim, ter se reunido com o ministro para oferecer uma série de propostas com o objetivo de difundir o uso do gás natural.
Em específico, as entidades pediram que o nível de injeção do gás do Brasil nos poços de produção, hoje em 45,20% (2021), seja reduzido para a média mundial de 20%.
Além disso, também vale destacar o pedido para fomentar a infraestrutura, novas UPGNs e de, logicamente, criar demanda para o gás, com o estímulo para a indústria local consumidora, com destaque para fertilizantes nitrogenados, mas também para o setor químico, proposta, aliás, também apoiada pelo novo governo.
Petrobras mais forte – Mas os sinais não muito positivos para o mercado vieram antes, no relatório final da equipe de transição, em dezembro, e depois reiterados no discurso de posse do presidente.
No centro das preocupações está a posição clara de recolocar a Petrobras como indutora principal da política de gás, petróleo e biocombustíveis, com adoção de possível “freio” na abertura do mercado.
No relatório, a posição é nítida, pois o texto afirma que a abertura do mercado e os desinvestimentos em transporte da Petrobras para cumprir o Termo de Cessação de Conduta (TCC) firmado com o Cade – a estatal já vendeu a Gaspetro, NTS e TAG e falta concluir a negociação da TBG –foram geradoras de distorções e “que caminharam no sentido de reduzir a participação da Petrobras no abastecimento e no mercado de gás natural”.
A análise final sugere que a retirada da estatal do transporte e distribuição, com a criação do mercado livre, tem poder para limitar investimentos no curto prazo.
Embora ainda seja prematuro saber até que ponto os integrantes do governo ainda em formação devem interferir na política do gás natural, a sugestão do relatório é de rever os marcos legais da abertura, a lei que instituiu o chamado
Novo Mercado de Gás, e mesmo o TCC assinado com o Cade pela Petrobras, para desinvestir e sair de seu papel monopolista.
Isso porque o relatório afirma literalmente que, “diante desse cenário, as atenções do novo governo devem se voltar para as leis, decretos e outros atos normativos que representam um risco de perpetuação do desmonte da área de Minas e Energia”.
Esses sinais causam preocupação em especialistas do mercado de gás.
Para o CEO da consultoria especializada Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto, mesmo que seja positiva a demonstração do novo governo em ampliar a oferta de gás – hoje realmente um grande problema do mercado – fortalecer ainda a mais o papel da Petrobras é preocupante.
Moreira Neto: fortalecer papel da Petrobras causa preocupação
“Apesar da evolução na participação privada depois da abertura do mercado, a estatal ainda tem posição dominante, sobretudo na comercialização do gás. Hoje ela produz entre 75% e 80% do mercado, mas comercializa perto dos 90%”, explica.
Para ele, fortalecer a Petrobras como indutora do mercado de gás, como está sendo divulgado pelo ministro, em um momento em que sua participação ainda não foi reduzida para um percentual aceitável, entre 40% e 50%, colocaria uma barreira quase intransponível para abrir o mercado.
Aliás, recente estudo da consultoria Brattle, encomendado por entidades do setor produtivo nacional vão ainda mais longe: para o Brasil ter mercado atrativo e competitivo para o gás a participação da estatal precisaria ser reduzida para 25%, em um prazo de no máximo dez anos.
O cenário com a Petrobras ainda mais fortalecida, na visão de Moreira Neto, tornaria pior o momento atual vivido pelos agentes privados, que vislumbram baixa oferta para crescer no ambiente de comercialização aberto, já que a perspectiva não indica grandes projetos de produção nos próximos anos.
Isso a despeito de, no último ano, a abertura ter obtido bons resultados, com contratos assinados entre produtores privados e distribuidoras de gás, principalmente no Nordeste, o mesmo não ocorrendo com o mercado livre para consumidores industriais, ainda limitado a raros contratos e ainda mais tendo a Petrobras como principal vendedora.
“O gás privado comercializado hoje é aquele volume liberado pelo acordo com o Cade, em 2019, que restringiu a Petrobras de comprar o gás dos seus parceiros privados”, diz.
Esse volume de gás começou a ser vendido para as distribuidoras do Nordeste em 2022, mas a oferta não cresce desde então.
E aí entraria outro problema, explica Moreira.
Como todo o mercado procurou consumir esse gás privado antes de recorrer à Petrobras, e como o portfólio de oferta é pequeno, houve elevação de preços.
“Isso fez esse gás privado ficar com preço próximo do praticado pela monopolista, o que tornou o cenário sem competição de fato”, diz.
Reinjeção – A proposta de diminuir a reinjeção de gás é bem-vinda, na opinião do consultor, mas precisa ser analisada com cautela. Isso porque, para o produtor de óleo e gás, o desafio do aproveitamento é muito grande.
“Temos um grande potencial de produção, mas dentro de um mercado consumidor que não cresceu. Não é um problema mais de oferta, o gás está disponível, descoberto, mas sim de criar incentivos de fato para que o produtor tenha motivos suficientes para levar o gás até a costa”, diz.
Na questão do incentivo para escoar o gás para a costa, Moreira teme que o novo governo tenha atitudes impositivas, por exemplo, condicionando a produção de petróleo ao transporte do gás.
“Isso é muito perigoso, porque ainda que a reserva do pré-sal seja interessante para o investidor, as empresas de petróleo estão reduzindo investimentos em E&P no mundo e vão continuar a reduzi-los. Impor obrigações demasiadas pode ser negativo e afugentar investimentos. A não ser que a Petrobras faça tudo sozinha”, diz.
Para ele, a alternativa mais viável para incentivar o escoamento do gás hoje reinjetado seria criar mercado, caso da indústria de fertilizantes nitrogenados e da química, ou mesmo na realização de alguns leilões de energia elétrica para contratação de termoelétricas de reserva, como alguns dos previstos no “jabuti” da Lei de Capitalização da Eletrobras, que prevê contratação de 8 GW em térmicas com 70% de inflexibilidade.
Neste último caso, o consultor vê como possível de ser benéfico leilão previsto para contratar 2 GW desse total da lei no Sudeste, sendo 1,2 GW para os estados da região e 750 MW para a área da Sudene (no ES e em MG).
Ao contrário dos leilões previstos na lei para o Centro-Oeste, Norte e Nordeste, onde não há gasoduto, produção suficiente de gás (o que criará mercado para o GNL) e consumo importante de energia elétrica, no Sudeste ele vê atratividade pelas térmicas
Segundo ele, há muitos projetos já licenciados de usinas no Rio de Janeiro e em São Paulo e que estão perto da produção de gás offshore.
Na sua avaliação, essa demanda nova para as termoelétricas que seriam contratadas poderia viabilizar projetos novos de perfuração e de escoamento do gás hoje reinjetado.
Para Moreira, pesa ainda a favor o fato de o Sudeste ter portos e infraestrutura na costa, demandando apenas investimento para levar o gás até o consumo, com conexões pequenas, o contrário do que ocorreria em outros mercados.
R$ 403,3 bilhões – Segundo estudo da consultoria GO Associados, se o Brasil reduzir a taxa de reinjeção de gás dos atuais 45,4% para 20%, equiparando-se à média global, com investimentos na interiorização, seria possível ter um efeito multiplicador que geraria uma receita na produção industrial do país de R$ 403,3 bilhões, gerando 2,8 milhões de empregos, R$ 53,7 bilhões em massa salarial e R$ 8,8 bilhões em arrecadação de impostos.
Para isso, porém, os investimentos totais na interiorização do gás precisariam envolver cerca de R$ 97,8 bilhões, sendo R$ 26,2 bilhões em rotas ou gasodutos para transporte, de R$ 24,5 bilhões em UPGNS e R$ 56,3 bilhões em novas plantas industriais.
Não por outro motivo, aliás, o consultor Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura, defende que a pauta de aproveitamento do gás reinjetado seja prioritária para o novo governo.
Em pronunciamento durante o Encontro Anual da Indústria Química de 2022, em São Paulo, o economista afirmou que o Brasil precisa deixar de ser refém do gás da Bolívia e da importação de GNL.
Pires citou ainda o fato de o Brasil estar construindo 8 plantas de regaseificação de GNL, com capacidade para produzir 150 milhões de m3 por dia, ao mesmo tempo em que são reinjetados 70 milhões de m3/dia nos poços.
“É surreal”, disse.
“Esse é o grande desafio desse governo Lula: conseguir destravar a oferta de gás. Nós temos esse gás, só precisamos trazê-lo e criar mercado para ele”, finalizou.