Ensino: Duas escolas numa só – engessar ou flexibilizar o ensino da engenharia química ?
Autores apresentam para debate uma proposta de reforma dos cursos de engenharia química
Coexistem duas correntes de ensino para formar engenheiros químicos: a “alquimista”, oriunda da Química Industrial e que preconiza muito estudo de matemática, física e química, e a “mecanicista”, que pretende minimizar os conhecimentos das químicas e cuja introdução se deu nos anos 60 via disciplinas de fenômenos de transporte e de análise, modelagem e engenharia de processos químicos em cursos de mestrado e doutorado e depois na graduação. A substituição da experiência profissional de antigos quadros docentes por recém pós-graduados e as mudanças das políticas de ensino resultaram em alguns problemas.
Para começar, há “Provão” separado para os cursos de Química Industrial e Engenharia Química. Também passaram a ser freqüentes as tentativas de reduzir o curso de graduação da Engenharia Química de cinco para quatro anos. Há de se notar ainda o engessamento curricular em torno de disciplinas teóricas acoplado à redução das aulas laboratoriais ou experimentais. Para finalizar, verificou-se da mesma forma a rejeição de vocações que buscam conhecimentos maiores de Química na Engenharia Química, provocando evasões de alunos.
A proposta, a seguir detalhada, baseia-se em um tronco curricular de três anos (adaptável a todas as Engenharias), mesclando disciplinas dos antigos ciclos básico e profissional, que pode motivar alunos, flexibilizar o ensino e conciliar vocações com os segmentos de mercado. São apresentadas ainda as disciplinas e objetivos para o tronco curricular e novos cursos genéricos de Engenharia de Processos Químicos e Engenharia Química Industrial.
Tronco de três anos – A Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) iniciou um processo de reforma curricular de graduação em 1998, que incorporou em 2000 a criação de um curso de engenharia biológica. Daí surgiu nossa idéia de expandir mais ainda o leque das habilitações na área da Engenharia Química. A legislação das profissões da Química inclui uma variedade de 25 especialidades reconhecidas de técnicos químicos. Nas engenharias fundamentadas em química existem apenas cinco diplomas referentes a especialidades profissionais (se excluirmos os Químicos Industriais). O Sistema Crea-Confea reconhece 20 grupos de modalidades profissionais e 34 designações (Zakon, 2000). Nas áreas de engenharia baseadas na Física surgem novas diplomações quando ocorre a transformação da ciência em tecnologia, como, por exemplo, no campo da Eletricidade, que se expandiu nas áreas de Eletrônica, Computação e na Mecatrônica (Zakon, Szajnberg e Nascimento, 2001).
Desde 2001 surgiu uma interação entre alunos, alguns docentes e ex-alunos da Escola de Química da UFRJ que visou buscar o consenso de idéias, perspectivas e opções exeqüíveis para modernizar o curso de graduação de engenharia química sem atrofiar malhas curriculares, suas cargas horárias e a qualidade resultante dos formandos. As idéias aqui expostas contrariam as propostas originais da redução drástica da carga horária individual e total das disciplinas e do tempo de graduação – que ainda é de cinco anos na quase totalidade dos cursos brasileiros.
O primeiro resultado daquela interação foi a divulgação no Informativo do Conselho Regional de Química – 3ª Região da nossa proposta para inovar o ensino da engenharia química e expandir a lista das suas habilitações, que incluiu a criação de um tronco de disciplinas de três anos para uma árvore curricular referente a doze diplomas (Zakon, 2002). A proposta de tronco foi elaborada com sugestões de docentes, alunos e ex-alunos e pode ser adaptada ao contexto de todas as engenharias (Tabela 1). O segundo resultado foi a criação repentina em junho de 2002 na Escola de Química do curso de engenharia de alimentos, que já existia na legislação pertinente.
Justificativas – Há várias justificativas para a implantação da nossa proposta flexibilizante. Para começar, a engenharia química constitui o estado mais evoluído e completo das profissões referenciadas à química e incorpora ferramentas úteis a todas as especialidades reconhecidas nas leis e pelo mercado de trabalho. é impossível incorporar em detalhes todos os segmentos químicos industriais no aprendizado das profissões da Química, mas é viável oferecer uma base comum aos que optam em adquirir conhecimentos genéricos ou escolhem os específicos.
É interessante expandir o leque de opções das especialidades ou habilitações no âmbito da engenharia química para acompanhar os avanços científicos, tecnológicos, profissionais e sociais. Além disso, os alunos vêm para a universidade para graduar-se e optar entre atuar em indústrias químicas, empresas diversas, setores públicos ou sistemas de ensino. Poucos pretendem permanecer na universidade. o espectro atual do corpo discente envolve alunos de diversas origens sociais, com expectativas de uma convivência saudável, academicamente produtiva e empolgante – incluindo horas de estudo, lazer, estágio ou atuação profissional.
Por fim, consideramos possível formar engenheiros químicos industriais polivalentes – que equivaleriam aos antigos profissionais que adquiriam formação Química Industrial e, depois, da engenharia química convencional (voltada para projeto) – e estimular as vocações para as novas áreas de engenharia de processos químicos, gestão tecnológica, segurança industrial, ambiental, química fina, bem como algumas consagradas, como a petroquímica, saneamento, materiais, petróleo e gás.
Busca de equilíbrio – Muitos calouros ingressam na universidade no esplendor da juventude, mas nem sempre compreendem o mundo novo repleto de novas responsabilidades que os acolhe. Motivá-los ao estudo intenso de imediato, exigindo-se aberta ou dissimuladamente a perda de horas de lazer pode resultar na perda acentuada do entusiasmo pelo ingresso ao mundo acadêmica, sob uma avalanche de conceitos, metodologias e instrumentos científicos intrigantes. Freqüentemente, surge o desespero individual e coletivo perante a queda dos coeficientes de rendimento acumulado, acarretando frustrações que devem ser evitadas.
A dificuldade maior dos docentes no exercício de suas funções talvez resida na Síndrome do Óbvio: “Isto é óbvio, não precisa ser dito”. A dificuldade maior dos alunos, comprovada por docentes com formação e preocupação pedagógica (Nascimento, 2001), é a de estabelecer “pontes” ou conexões entre as matérias do segundo grau e as da universidade, bem como aquelas integrantes do próprio currículo de graduação (Zakon, Szajnberg e Nascimento, 2002). A fama da Escola de Química reside na sua forte tradição de ensino das químicas fundamentais e tecnológicas nos seus cursos de graduação, ora em fase de redução na engenharia química, o que frustra muitos alunos.
Para se chegar a nossa proposta, foi fundamental a interação entre alunos e professores. A experiência de docentes com muita experiência didática é importante para um processo de reforma curricular assim como as idéias renovadoras de novos professores. Porém, é imprescindível ouvir alunos de diversos períodos do curso de graduação e, também, ex-alunos com tempos e especialidades diferenciadas. Obter um consenso para uma proposta curricular constitui um desafio gigantesco que deve ser enfrentado porque é compensador.
Qualquer proposta que seja decidida no voto, principalmente sob o pretexto de atender prazos, está fadada ao insucesso parcial ou total, e seus efeitos danosos recaem sobre os alunos e sobre os envolvidos na administração do ensino universitário.
Portanto, as propostas incorporadas nas Tabela 1 e 2, e na Figura 1, deverão ser objeto de discussões adicionais, pois mesclam e divulgam proposições de docentes, ex-alunos e alunos veteranos – alguns dos quais com formação obtida em Escola Técnica Federal de Química. Não basta inovar; é necessário prover meios para que o aluno possa aprender suavemente uma massa de conhecimentos destinada a transformá-lo num profissional criterioso, criativo e entusiasta da habilitação adquirida.
Assim, as idéias humanísticas emanadas da Associação dos Ex-Alunos da EQ-UFRJ em consonância com a experiência adquirida por vários profissionais que atuaram em operação e gestão de indústrias químicas, projetos, vendas técnicas e consultorias foram incorporadas. Algumas experiências docentes voltadas para o estabelecimento de “disciplinas-ponte” foram incorporadas na proposição do tronco curricular de três anos. Dentre as propostas estabelecidas pela Comissão de Reforma Curricular da Escola de Química da UFRJ (2002), foram aproveitadas várias idéias de disciplinas correspondentes às ênfases para estabelecer as propostas dos sétimo ao décimo período dos cursos genéricos de Engenharia de Processos Químicos e Engenharia Química Industrial, porque incorporavam tendências de consenso coletivo a serem valorizadas.
Nivelamento no primeiro ano – A maior importância do primeiro período reside em apresentar uma visão ampla e moderna do contexto da profissão, por meio das disciplinas introdutórias às Ciências Naturais (mundos científico e tecnológico vistos pela História, Matemática e Termodinâmica), às Químicas Analíticas (a “alma” das profissões da Química) e à Computação (indispensável instrumento em todas as áreas de atuação). As disciplinas genéricas de Química Geral e Analíticas são indispensáveis. No caso de Basic, Fortran e Planilhas Eletrônicas, vale ressaltar que as duas linguagens são diferentes, porém seus programas são intercambiáveis, em nível de projeto ou de pesquisa acadêmica. Muitos programas antigos de Fortran são válidos para pesquisas de Cinética Química.
Segundo Guigon (2000), programas elaborados em Fortran 77 podem ser submetidos ao compilador do Fortran 90, que oferece melhor desempenho computacional dentre as linguagens conhecidas, bem como existem versões para microcomputadores tipo PC. As aulas de Desenho Técnico vinculam-se à expressão milenar mais intuitiva e expressiva de qualquer ramo da engenharia, visto que qualquer equipamento, construção, artefato num processo de concepção e acabamento é descrito por meio de tal recurso (pois “uma imagem vale mais que mil palavras”).
No segundo período é necessário introduzir os aspectos fundamentais e característicos em Humanidades para que o estudante perceba as potencialidades do seu esforço individual e coletivo perante a sociedade. A descrição e concepção dos processos químicos industriais inorgânicos (milenares) e orgânicos consagrados, destacando as matérias-primas, os tratamentos e recursos de controle físico e químico, nas disciplinas introdutórias à “engenharia de processo” (ou tecnologia química), constitui uma inovação decisiva para consolidar convicções estudantis: se o aluno gostar, permanece matriculado; em caso contrário, muda de curso e evita desgastes pessoais e despesas.
Duração do curso – Uma pesquisa da Associação dos Ex-Alunos da EQ-UFRJ realizada em 2000 e as opiniões emanadas por diversos alunos e consolidada pelo Diretório Acadêmico da EQ-UFRJ revelou a preferência (do mercado) pela graduação em cinco anos para engenharia química.
Atualização dos cursos – A percepção diária do tratamento diferenciado que os alunos de graduação em Química Industrial recebem na mesma universidade onde se leciona o curso de Engenharia Química, e, ainda, alguma desvalorização em termos de mercado, que ainda ocorre de forma muito discreta, gerou a convicção de que era necessário equiparar os dois diplomas em termos de conteúdo e imagem. Assim, a idéia do curso de “Engenharia Química Industrial” representa uma decorrência daquele fato, bem como da experiência muito feliz da Escola de Química da UFRJ ter formado no Século 20 vários químicos industriais que complementaram suas habilitações em engenharia química e adquiriram uma qualidade excepcional de trabalho. Vale ressaltar que existe no Brasil, pelo menos, um curso já regulamentado formando os “engenheiros químicos industriais”.
Para elaborar as Tabelas 2 e 3, foram consideradas diversas disciplinas eletivas ministradas na Escola de Química da UFRJ e aquelas propostas pela Comissão de Reforma Curricular em 2002. A discussão em detalhes seria desproporcional ao presente trabalho e, por isto, foi excluída. Alguns exemplos podem ser abordados para o caso da Engenharia de Processos Químicos. Primeiro exemplo: a sigla CFD – Computacional Fluid Dinamics aborda a modelagem computacional associada à simulação de eventos grandes como, por exemplo, derramamento de petróleo no mar, rios, etc. Segundo exemplo: a Engenharia de Polímeros trata da modelagem de reatores e cinética de reações poliméricas e poderia incluir também os equipamentos de extrusão e moldagem de peças.
Em se tratando de estágios curriculares, verifica-se que um aluno da área de Engenharia Química pode buscar iniciações científicas na própria universidade nos primeiros anos e, posteriormente, em indústrias químicas e empresas de engenharia. Tal perspectiva pode gerar um fator de ansiedade, inclusive se considerarmos que muitos alunos precisam trabalhar para seu sustento. O advento de disciplinas ministradas em períodos semi-vespertinos ou noturnos vem sendo prestigiado por alunos desejosos de obter uma sólida formação universitária e profissional.
Para melhorar a disponibilidade de tempo para os alunos realizarem estágios em empresas, na jornada de trinta horas semanais, convém limitar o número de disciplinas do 7º ao 10º período em cinco. O “estágio supervisionado” tornou-se “obrigatório” e isso merece uma discussão ampla, pois ocupa uma carga horária anteriormente atribuída ao ensino experimental dentro da própria instituição.
Conclusões – A flexibilização do ensino de Engenharia Química incorpora necessariamente o reconhecimento de vocações e oportunidades diferenciadas no mercado de trabalho empresarial e acadêmico. A flexibilização proposta entende que o consenso pode ser atingido pela expansão das habilitações de engenharia fundamentadas na Química, do mesmo modo como ocorre no nível das demais que corresponderam aos avançados ocorridos na Física.
Acreditamos que a idéia de tronco curricular de três anos pode ser adaptada para todas as engenharias. Para tentar a modificação, seria melhor o consenso, que embora mais difícil e lento para ser obtido do que a vitória em processos de votação, é mais duradouro e evita desgastes.
É importante ressaltar que as idéias inovadoras aqui apresentadas foram balizadas pela vivência atual de alunos cursando a graduação da Escola de Química da UFRJ e por docentes e ex-alunos, e constituem um resultado parcial de discussões que podem romper o engessamento de idéias baseadas no modelo mecanicista americano que se aplica apenas a um tipo de vocação.
O trabalho prosseguirá para compatibilizar diferentes realidades acadêmicas e de mercado que possam estar ocorrendo no Brasil, visando ampliar as habilitações existentes, propiciar uma trajetória acadêmica empolgante e suavizada para todos os alunos e garantir a qualidade do ensino.
Referências
ZAKON, A. – A Expansão da Engenharia Química no terceiro milênio visando a geração de processo, o desenvolvimento e otimização de processos e a atuação industrial – Anais em CD dos VI e VII Encontro de Educação em Engenharia, Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Itaipava, RJ, 27 de novembro a 01 de dezembro de 2000 e Petrópolis, RJ, 07 a 13 de novembro de 2001.
Zakon., A.; Szajnberg, M. e , Nascimento, J. L. – A expansão das ciências naturais e das engenharias em 2001 – Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ensino de Engenharia, COBENGE.2001, Porto Alegre, RS, 19 a 22 de setembro de 2001.
ZAKON, A. (Entrevista) – Em busca de inovações na Engenharia Química – Informativo CRQ.III do Conselho Regional de Química da 3ª Região, Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, Jornalista Responsável: Maria Rachel Oliveira, páginas 20-21, Janeiro-Fevereiro de 2002.
Zakon, A.; Szajnberg, M. e Nascimento, J. L. – Introdução às Ciências Naturais: uma proposta – Congresso Brasileiro de Ensino de Engenharia – COBENGE.2002, Piracicaba, SP, setembro de 2002.
Guigon, J.M.B. – Proposta da disciplina de “Elementos Finitos I” para o Programa de Engenharia Civil da COPPE-UFRJ – comunicação pessoal, março de 2000.
CRC – COMISSÃO DE REFORMA CURRICULAR – Proposta de grades curriculares para os Cursos de Engenharia Química, Química Industrial e Engenharia de Bioprocessos – Escola de Química – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 8 de março de 2002.
AUTORES
Prof. Dr. Abraham Zakon1,
Rosana Marques Amorim2,
Bárbara Parreiras Sá2,
Moacyr Martin Rocha Neto2,
Douglas Silva Porto2,
Edmilson Barbosa de Lima Jr 2,
Aurélio de Paula Gondim Pinheiro 2
1-Universidade Federal do Rio de Janeiro Departamento de Processos Inorgânicos, Escola de Química Centro de Tecnologia, Bloco E – Sala 206 21949-900 – Ilha da Cidade Univerisitária – Rio de Janeiro, RJ Telefones: 0XX-21-562-7643 Fax: 0XX–21-562-7567 [email protected]
2-Universidade Federal do Rio de Janeiro Diretório Acadêmico da Escola de Química Centro de Tecnologia, Bloco E – Fundos 21949-900 – Ilha da Cidade Univerisitária – Rio de Janeiro, RJ Telefones: 0XX-21-562-7420 Fax: 0XX–21-562-7567 [email protected]
AGRADECIMENTOS: Paulo César Strauch, Pedro Antônio Peixoto Vieira e Dílson Rosalvo dos Santos (Associação dos Ex-Alunos da EQ-UFRJ); Bruno Barbosa Castro, Michelli Siqueira Monteiro de Barros e Flávio Henrique Marchesini de Oliveira (Diretório Acadêmico da EQ-UFRJ, Prof. Mordka Szanjberg; da UERJ, Prof. Jorge Luiz do Nascimento, EP-UFRJ. Engo Luís Fernando de Oliveira Gutman e Sra. Suely Baptista dos Santos, do CRQ – 3a Região, e Prof. Bruno de Bonis, CREA-RJ