Gás carbônico: emissões e as conexões da engenharia – ABEQ

Olá, leitoras e leitores. “Conexões da Engenharia” é um programa da National Geographic de 2008, apresentado por Richard Hammond, em que se mostram como coisas aparentemente tão diferentes como um arco mongol e o Airbus 380, ou os super telescópios e as geladeiras estão relacionados pela tecnologia. Quando pensamos nas questões da indústria química, é possível fazer conexões pouco óbvias, mas necessárias se quisermos de fato chegar às soluções estruturantes. Este texto acabou, desse jeito, ligando alhos com bagulhos.
O mercado de carbono e os passos à direção correta
Há muito se discute sobre as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e o que se deve fazer para minimizá-las. Esse assunto tem sido tema de muitos textos deste espaço. A novidade é que, aparentemente, o Brasil passou a se mover de fato na direção correta – quais são os detalhes operacionais que surgem quando se lida com essa questão.
Antes uma ressalva necessária. Metade das emissões brasileiras de gás carbônico equivalente são oriundas das queimadas relacionadas ao desmatamento de biomas. Portanto, se eliminássemos o desmatamento ilegal eliminaríamos metade das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do Brasil. Isso já foi assunto por aqui (“A COP27 e a Indústria Química brasileira”) Contudo, muito pouco podem a indústria química e seus profissionais a respeito do desmatamento. Vamos olhar então para as emissões não relacionadas ao desmatamento.
Um exemplo notável do tal movimento na direção correta foi a proposta da CNI (Confederação Nacional da Indústria) para o mercado regulado de carbono, entregue no último dia 20 de junho ao Vice-Presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) Geraldo Alckmin, durante evento em Brasília.
Um dos pontos principais do documento da CNI é a adoção de um valor mínimo de emissão anual, o documento propõe 25 ktCO2e (mil toneladas de gás carbônico equivalente) para selecionar os entes que serão regulados. Qual é o significado desse número na prática? Considerando a emissão de caldeiras de vapor e veículos automotivos, podemos ter uma ideia mais precisa.
Limite para emissão de gás carbônico: Quanto é 25 ktCO2e?
Fazendo contas muito simples e simplificações como que: metade do peso seco da lenha seja carbono, o gás natural seja metano puro, e a eficiência de conversão do poder calorífico dos combustíveis em vapor seja de 80% (maior do que a média, que varia entre 65% e 75%), chega-se a produções de vapor, para caldeiras operando 330 dias por ano, 24 horas por dia, que equivaleriam a 25 ktCO2e. Caldeiras a lenha gerando pelo menos 7,5 toneladas de vapor por hora ou caldeiras a gás natural gerando 19,2 toneladas de vapor por hora emitiriam mais de 25 ktCO2e por ano. Ou seja, quase toda planta da indústria química, mesmo as menores.
Circularidade e emissões líquidas
Mas há também outra questão que deve ser considerada. Apesar da eficiência da caldeira a lenha ser bem menor do que a das caldeiras a gás natural, a emissão de GEE de caldeiras a lenha é praticamente toda neutralizada pela plantação de madeira para uso como lenha. Ou seja, se a caldeira a lenha utilizar madeira reflorestada, não estará emitindo GEE para a atmosfera, exceto aquela porção emitida no transporte da lenha. Contudo, a combustão de lenha pode gerar a emissão de material particulado que deve ser abatido por lavadores de gases. A emissão de material particulado pode causar no curto prazo danos maiores à saúde humana do que a emissão de GEE.
Para quem possa considerar anacrônico o cálculo da emissão de GEE devido à queima de lenha pela indústria, deve se lembrar que a lenha fornece o equivalente a 87,5% da energia fornecida pelo gás natural à indústria no Brasil.
Quanto se percorre com 25 ktCO2e?
A questão do transporte da lenha do exemplo anterior traz outra consideração. Qual seria a equivalência daqueles 25 ktCO2e devidos à circulação de veículos? A resposta: 30 mil litros de gasolina ou 25,65 mil litros de diesel por dia. Considerando a emissão por quilômetro rodado, talvez fique mais fácil entender.
Automóveis emitem 0,19 kg de CO2e por quilômetro rodado, enquanto caminhões e ônibus emitem 1,28 kg de CO2e. Considerando automóveis rodando a 60 km/h por 4 horas por dia, seriam necessários 1.500 carros para emitir aqueles 25 ktCO2e. No caso dos caminhões, seriam necessários 167 caminhões rodando 8 horas por dia a 80 km/h.
Resumindo, empresas de ônibus, grandes transportadoras de carga e donas de grandes frotas de automóveis, como locadoras, devem ser reguladas como grandes emissores de GEE.
Biocombustíveis como solução à emissão de gás carbônico
A solução para o Brasil passa por automóveis movidos a etanol e carros híbridos (a etanol!), pois a simples eletrificação da frota exigiria um aumento de oferta de eletricidade que não está disponível.
Para o caso de ônibus e caminhões, o biodiesel é uma boa alternativa que, contudo, traz pelo menos dois grandes desafios relacionados à matéria-prima e ao subproduto de sua produção.
O biodiesel é menos poluente que o diesel de petróleo, mas a sua queima não é neutra em emissão de gás carbônico (CO2), como a do etanol, por exemplo. A produção do biodiesel é feita pela transesterificação de óleos vegetais ou gordura animal por álcoois. Simplificando muito o conceito, a reação de produção de biodiesel substitui uma molécula de glicerol por três moléculas de álcool, tornando o óleo menos viscoso e mais volátil, equivalente ao diesel de petróleo. Os problemas, ou desafios, são justamente o álcool utilizado e o glicerol produzido.
Utiliza-se o metanol e gera-se o glicerol como subproduto do biodiesel. O metanol é produzido a partir do metano do gás natural. Ainda que o gás natural seja menos poluente do que o petróleo, ainda é um combustível não renovável, cujo uso resultará, portanto, em aumento de GEE na atmosfera. Quanto ao glicerol, é preciso ter destinação adequada para que tudo valha a pena do ponto de vista ambiental. O glicerol merece um texto exclusivo. Contudo, vamos aos grandes números.
Biodiesel como solução?
A molécula média de diesel tem massa molar de 184 g/mol e 13 carbonos. Isso significa que o consumo de 1 kg de diesel emite 3,1 kg de CO2 (gás carbônico). O biodiesel tem emissão líquida de GEE apenas por conta do metanol produzido com gás natural. Assim, 1 kg de biodiesel lança 140 g de CO2 (gás carbônico) na atmosfera, ou 14% do diesel.
Segundo a ANP, em 2022, foram produzidos 6.254.736 m³ de biodiesel ou 5,5 milhões de toneladas. Isso significa que foram também produzidas cerca de 550 mil toneladas de glicerol, e utilizadas 574 mil toneladas de metanol. Houve, portanto a emissão líquida de 789 mil toneladas de CO2e para a atmosfera no uso do biodiesel.
Desde abril deste ano, o biodiesel compõe 12% do diesel combustível. Portanto, se quiséssemos substituir o diesel pelo biodiesel como combustível de veículos pesados, precisaríamos aumentar a produção de biodiesel em 8,3 vezes. Isso significa usar 4,8 milhões de toneladas de metanol, e achar disposição adequada para 4,6 milhões de toneladas de glicerol.
Gás é 6!
Ou gás a 6. Para sorte de todos, eu sou engenheiro e não publicitário, pois esta seria a minha sugestão de bordão para a Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química) ou para a CNI. Segundo a Abiquim: “(…) a ampliação da oferta de gás natural ao preço médio de US$ 6/milhão de BTU (British Thermal Unit) no mercado nacional tem potencial de gerar investimentos da ordem de R$ 70 bilhões em novas plantas, na retomada de produção em plantas hoje ociosas e no desenvolvimento de produtos que atualmente são importados. Mesmo com o gás natural disponível para a indústria brasileira hoje nos patamares mais elevados do mundo (aproximadamente US$ 16/ milhão de BTU), o setor químico é responsável por quase 30% do consumo industrial. Anualmente, o setor consome 3 milhões de m3 do insumo como matéria-prima e 9,7 milhões de m³ como energético e utilidades.”
Somente para produzir o metanol para o biodiesel de hoje, seriam necessárias 274 mil toneladas de metano ou 360 milhões de m³, sem considerar a energia gasta na produção. São 2,5 dias da produção nacional atual, seriam 22 dias para substituir todo diesel. Há gás, portanto.
Cadê o gás?
O gás natural do Brasil é muito caro por algumas razões. Uma delas, a carga tributária, foi recentemente encaminhada com a reforma tributária. A outra razão é a ausência de gasodutos e linhas de gás. Enquanto a Argentina tem 16 mil km de gasodutos, o Brasil tem 9.400 km.
Considerando diâmetro de 20 polegadas e um custo de US$ 70 mpol, o Brasil precisaria investir R$ 46 bilhões para ter uma malha de gasodutos similar à da Argentina.
Emissões de gás carbônico: De volta ao começo
A proposta de mercado regulado de carbono no Brasil, com modelo cap-and-trade (limite e negociação) proposto pela CNI, e que está em discussão desde pelo menos 2020, tem impacto para gerar R$ 128 bilhões em receitas.
Se o governo for ágil em estabelecer as regulações do mercado de carbono, há três projetos de lei em discussão no Congresso Nacional – e não alterar a Nova Lei do Gás Natural de 2021 –, há alguma chance para a neoindustrialização que anuncia e ambiciona.
A Nova Lei do Gás Natural altera o regime de concessão (de 2009, que resultou na paralisação da construção de gasodutos) para o regime de autorização, estabelece novas regras tarifárias, permite o acesso de terceiros aos gasodutos, unidades de tratamento e processamento de gás natural e terminais de Gás Natural Liquefeito, e autoriza a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) a adotar um programa de desconcentração do mercado. Ou seja, desfaz o que fez o atual presidente em seu mandato anterior quando embicava para a Nova Matriz Econômica, que resultou na crise econômica de 2015. Há uma frase famosa sobre erros do passado que se refere à dinastia dos Bourbons: “Não aprenderam nada, não esqueceram nada”. Resta-nos torcer para o nosso Luís se afastar do Rei-Sol, ser mais Silva e menos Bourbon.
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COBEQ 2023
Salvador sediará o 24º Congresso Brasileiro de Engenharia Química (24º Cobeq) entre os dias 01 e 04 de outubro de 2023. O Cobeq é o evento de maior relevância nacional na área de Engenharia Química, reunindo pesquisadores da Academia e da Indústria. Desde 1976, estabelece bianualmente um ambiente de encontro para discussão de temáticas proeminentes e atuais, relacionadas à pesquisa, inovação e aplicação da Engenharia Química no Brasil e no mundo. Nesta 24ª edição, o Cobeq traz como tema central “O papel da engenharia química na transição energética, desfossilização e circularidade da economia”, um tema atual e de relevância mundial na busca de um futuro sustentável para nosso planeta. Acesse: https://cobeq2023.com.br/index.php
Referências

Brasil M. Proposta da indústria para mercado regulado de carbono estima receitas de R$ 128 bi. agência epbr, 20 de junho de 2023, https://epbr.com.br/proposta-da-industria-para-mercado-regulado-de-carbono-estima-receitas-de-r-128-bi/.
Carvalho CHR. EMISSÕES RELATIVAS DE POLUENTES DO TRANSPORTE MOTORIZADO DE PASSAGEIROS NOS GRANDES CENTROS URBANOS BRASILEIRO. Texto para Discussão 1606. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1606.pdf. Acessado 17 de julho de 2023.
Confederação Nacional da Indústria. Proposta da indústria para o mercado regulado de carbono / Confederação Nacional da Indústria. – Brasília : CNI, 2023.
Corporate Standard | GHG Protocol. https://ghgprotocol.org/corporate-standard. Acessado 17 de julho de 2023.
poder calorifico. https://www.antoniolima.web.br.com/arquivos/podercalorifico.htm. Acessado 17 de julho de 2023.
Venturi V et al. Relação ar/combustível e consumo específico para formulações de diesel/biodiesel. 30a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química. Disponível em http://sec.sbq.org.br/cdrom/30ra/resumos/T1173-1.pdf . Acessado 17 de julho de 2023.
O AUTOR
André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP, com mestrado em Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos pela Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e Doutorado em Engenharia Química pela UFSCar. Trabalhou no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e em diferentes indústrias químicas. Atualmente é professor do departamento de Engenharia Química da UFSCar. contato: [email protected]
ABEQ
A Associação Brasileira de Engenharia Química (ABEQ) é uma entidade sem fins lucrativos que congrega profissionais e empresas interessadas no desenvolvimento da Engenharia Química no Brasil. É filiada à Confederação Interamericana de Engenharia Química. Seu Conselho Superior, Diretoria e Diretoria das Seções Regionais são eleitos pelos associados a cada dois anos.
Mais informações: https://www.abeq.org.br/
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