Crise Hídrica: Soluções para evitar colapso passam por combate a perdas, mais reúso e investimentos

Precisou ocorrer um momento crítico de estiagem, o pior nos últimos cinquenta anos, para a sociedade se atentar para o óbvio: a água nas regiões metropolitanas, em específico em São Paulo, é tão escassa como em áreas desérticas do mundo. E isso não por causa da geografia local, mas principalmente em razão da grande e crescente densidade populacional e em virtude também da poluição dos rios locais, que obrigam os responsáveis pelo saneamento a captar o recurso a distâncias cada vez maiores.
Não custa lembrar que a RMSP tem disponibilidade hídrica de apenas 201 m³/habitante/ano, índice inferior a regiões do semiárido nordestino, sendo que a ONU preconiza como nível adequado 2.500 m³/habitante/ano, no mínimo. Situação que não é abrandada pelo fato de a concessionária local, a Sabesp, captar água de mananciais distantes até 70 km do centro da capital, como no caso do sistema Cantareira, responsável por mais de 50% do abastecimento e com águas aduzidas parcialmente em bacias hidrográficas em território mineiro, nos contrafortes da Serra da Mantiqueira.
A reação imediata e mais lógica após a constatação desse cenário é saber o que fazer para evitar que a região entre em colapso hídrico e institua na ordem do dia racionamentos, o que ficou e ainda está próximo de acontecer, visto que a situação já provocou até paradas em indústrias no começo de fevereiro, como ocorreu por mais de uma semana com a Rhodia, em Paulínia, que não tinha como continuar a captar água do rio Atibaia para alimentar o sistema de refrigeração da unidade de poliamida e intermediários.
Várias ações – As opiniões dos experts no assunto não são muito divergentes, têm apenas variações de ênfases. De forma geral, é um consenso que são várias as ações que precisam ser levadas em conta. Não há uma fórmula mágica para tornar o sistema de abastecimento da região da macrometrópole paulista mais confiável.

Para o consultor da GO Associados, Marcelo Morgado, que por muitos anos foi assessor especial da presidência da Sabesp, há três chaves para atacar a crise. A primeira delas é o esforço para reduzir o consumo residencial, já que na região metropolitana ele é responsável por 85% do total (contra 10% na média brasileira). A ação, que inclui campanha na mídia para conscientização da população e educação ambiental, deve ser frequente e, segundo ele, sua parcial implementação rendeu frutos: nos últimos dez anos, um programa da Sabesp (Pura – Programa de Uso Racional de Água) provocou redução de 11% do consumo na região metropolitana (de 17,08 m3/hab./mês, em 2001, para 14,30 m3/hab./mês, em 2011).
Mas a questão da redução do consumo doméstico precisa ir além das campanhas e programas de educação ambiental. Uma medida emergencial adotada em São Paulo agora na crise, a de criar bônus de desconto para quem abaixar o consumo, pode surtir efeito no curto prazo. Porém, no entendimento de Morgado, baseado em estudos feitos por várias pesquisas internacionais, trata-se de uma medida paliativa, que não surte o mesmo efeito da ação coercitiva, ou seja, de punição para aqueles que desperdiçam água aleatoriamente.
Na opinião do consultor, um projeto de lei em regime de aprovação urgente na Câmara Municipal, de número 737/2013, de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV), pode ajudar nesse cenário ao impor punições para pessoas que utilizem água potável distribuída para limpeza de calçadas. O PL determina que a limpeza de calçadas, estacionamentos e outros logradouros externos de acesso público deverá ser feita por varrição, aspiração e outros recursos que prescindam de lavagem, exceto quando a água for de reúso ou de reaproveitamento da chuva. E carros também não poderão ser lavados em vias públicas com mangueiras.

A opção pela punição, em vez da criação de bônus para quem economizar, segundo a experiência internacional, é mais eficaz, porque o bônus no longo prazo acarreta um prejuízo para a companhia de saneamento, que já sofre sérios problemas de arrecadação. O descumprimento das determinações começa com uma advertência, seguida por nova advertência e comparecimento do responsável pelo imóvel para palestra educativa. A seguir, há uma punição de R$ 200,00 com valores dobrados após novas reincidências, sendo que a multa será corrigida anualmente pela variação do IPCA. Aliás, São Paulo está adotando a medida, que deve ser colocada em prática nos próximos meses, até de forma atrasada. Cidades do interior, como Valinhos, Cosmópolis, Limeira e Vinhedo já punem os dilapidadores e com multas superiores, que chegam a R$ 1.600,00, caso de Vinhedo.
Potencial do reúso – O combate ao desperdício doméstico, para Morgado, além de se justificar por causa do alto consumo na região metropolitana, também se explica pelo fato de ser mais difícil promover mudanças principalmente no consumidor industrial, cujas reduções no uso da água dependem de altos investimentos e de modificações no processo. Isso não significa, porém, que não haja nada a ser feito nas unidades desses importantes consumidores, que só não são atualmente mais representativos por causa do grande êxodo industrial ocorrido na região metropolitana nas duas últimas décadas.
Nesse aspecto, a ação com maior potencial é estender a possibilidade de aproveitamento de água de reúso proveniente do tratamento terciário do esgoto, uma alternativa inteligente para uso industrial com capacidade de deixar mais água potável disponível para a população.

Há cinco estações de tratamento de esgoto (ETEs) na região metropolitana com as chamadas EPARs (estações de produção de água de reúso): ABC, Barueri, Jesus Netto, Parque Novo Mundo e São Miguel Paulista. Mas, dessa capacidade instalada, de 800 litros por segundo, utiliza-se apenas 57% (450 l/s). Isso porque não há um programa efetivo de desenvolvimento de clientes para absorver a produção. Segundo Marcelo Morgado, o pouco aproveitamento tem a ver com dois fatores: o estigma de usar água cuja origem é o esgoto e os altos custos pagos pelos fretes dos caminhões para levar a água de reúso e para ampliar as tubulações para transportar o líquido até o usuário final.
Do total utilizado hoje na RMSP, em 55 clientes, cerca de 75% é transportado via adutoras, sendo a principal delas a de 17 km que transporta a água de reúso da ETE ABC para o polo petroquímico (projeto Aquapolo, sociedade com a Odebrecht, que gera 650 l/s e tem capacidade total de 1.000 l/s) e outras feitas para clientes importantes, como a têxtil Coats Corrente, que recebe 45.000 m³/mês da ETE Jesus Netto por adutora de 900 metros e a também têxtil Santher, consumidora de 60.000 m3/mês da ETE Parque Novo Mundo, via adutora de 1.400 metros. Além dessas indústrias, quatro prefeituras – São Paulo, Santo André, São Caetano do Sul e Barueri – recebem por caminhões-tanque cerca de 20.000 m3/mês.
Segundo a Sabesp, o fornecimento total de água de reúso corresponde a apenas 2,75% do total de 16,5 mil litros/segundo de esgotos tratados (média de 2013). Por ser uma alternativa barata (R$ 1/ m3) e que, em um cálculo aproximado da Sabesp, alivia, a cada mil litros/segundo, o consumo de 300 mil pessoas, a água de reúso deveria ser mais considerada como alternativa para minimizar o consumo por água de abastecimento. Não à toa, a Sabesp tem como meta produzir 3,5 mil litros por segundo de água de reúso, o que corresponde a aproximadamente 5% da vazão de água produzida para abastecimento.

Para as indústrias, a utilização desse recurso recuperado pode ser uma boa economia. Como consomem acima de 50 m3/mês, elas caem na faixa de tarifa de água de reúso que pode apresentar custo médio que oscila de 8% a 42% do custo da água potável. Atualmente, a Sabesp está implantando uma unidade para fornecimento de água industrial para a empresa têxtil Santaconstancia e está em estudos avançados para futura implantação em uma empresa do setor de papel e celulose.
É com esse panorama do reúso em mente, aliás, que outro projeto de lei (870/2013) na Câmara Municipal de São Paulo, também de autoria do vereador Gilberto Natalini, pretende alterar o artigo 1º da lei 13.309, de 2002, para estabelecer novas regras para aplicações urbanas para a água de reúso, definida pela lei não só como aquela produzida por polimento do efluente final de ETEs como também a oriunda de captação e tratamento simplificado de águas de chuva.
A ideia do projeto é permitir o uso dessa água para lavagem de ruas, calçadas, praças públicas, monumentos, pátios e estacionamentos de próprios municipais e outros logradouros; desobstrução/limpeza de galerias de águas pluviais e piscinões; para lavagem de caminhões e carretas de lixos e pátios de transbordo de resíduos sólidos urbanos; umectação para ajuste para umidade ótima de terraplenagem; cura e água de mistura de concreto não-estrutural; lamas de lubrificação em métodos de construção não-destrutivos, como perfurações unidirecionais; resfriamento de rolos compressores em serviços de pavimentação asfáltica; e umidificação de pavimento para aumentar a umidade relativa do ar em logradouros em que sua redução na estiagem se tornou problema de saúde pública.

Perdas – Outra ação importante para reduzir as chances de racionamento é combater as perdas, principalmente durante a distribuição de água. A Sabesp tem um programa constante, com previsão de investimento de R$ 4,5 bilhões, para reduzir seu percentual de perdas de 25,7%, em 2013, para 19%, em 2019.
Trata-se aí de um problema nacional, até pior em certas regiões do país, como no Nordeste. A média de perdas do Brasil é de aproximadamente 40%, muito acima dos padrões europeus, que estão na faixa entre 15% e 20%, e mais ainda do benchmarking mundial, a cidade de Tóquio, com mínimos 4% de perdas.
Em São Paulo, assim como em outras regiões metropolitanas, o grande entrave para diminuir as perdas, além da questão puramente técnica, é de ordem jurídica. Compartilha dessa visão a advogada especializada Alessandra Ourique, sócia do escritório Hesketh Advogados, de São Paulo. Para ela, a falta de um ambiente regulado para macrorregiões é o principal problema. Isso porque, no caso de São Paulo, a Sabesp vende sua água produzida no atacado para vários municípios da região metropolitana, que são os responsáveis pela distribuição, por meio de suas autarquias. E é justamente nessa etapa que ocorrem as grandes perdas.
Como muitos municípios não são regulados por nenhuma agência, já que são os titulares do serviço e só optam pela fiscalização da agência estadual (Arsesp) se assim o quiserem (ao contrário da Sabesp), eles não sofrem nenhuma sanção ou obrigações para estabelecer metas de combate a perdas. O que acaba ocorrendo é que a companhia estadual, responsável pelos investimentos pesados para aumentar a produção e conduzir a água até a boca dos reservatórios, normalmente leva a culpa, enquanto os principais causadores dos problemas, os serviços autônomos municipais, passam imunes às críticas.
Para regularizar essa situação, há uma saída jurídica: os municípios poderiam ser regularizados pela Arsesp, por agências municipais ou por consorciadas entre os municípios. Nesse sentido, uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2013 até já clareou esse impasse. Pela jurisprudência, regiões metropolitanas devem ter operação e regulação integradas, com uniformidade de normas e punições, para evitar justamente essas incongruências. O problema é que até agora isso não foi colocado em prática.
“Sem essa integração fica muito difícil diminuir as perdas. E os entes responsáveis, municípios e estados, sequer sabem ainda como fazer para uniformizar a operação”, disse Alessandra.
Além de a falta de ambiente regulado afetar possíveis medidas para redução de perdas, o cenário em vigor mantém antigos problemas na distribuição de água. Isso porque muitas vezes os municípios não repassam o valor da tarifa cobrada pelo abastecimento para a companhia, que fica no prejuízo. Como responsáveis pela distribuição, várias prefeituras recebem o valor cobrado e não pagam para a produtora da água.
Grandes obras – Investir na diminuição de perdas, se não acaba com a necessidade de altos investimentos em captação e novas reservações, pelo menos poderia diminuir os gastos. Principalmente ao se saber que São Paulo iniciou recentemente as obras do seu nono sistema produtor, o de São Lourenço, no Vale do Ribeira (Represa da Cachoeira do França, em Ibiúna), uma PPP que exigirá R$ 1,6 bilhão para trazer água a 83 km da cidade, a um custo operacional alto por conta do recalque necessário para vencer desnível de cota de 300 metros.
A PPP de São Lourenço, cujas obras estão a cargo das empreiteiras Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa, inclui a construção de uma represa no Rio Piraí, em Ibiúna, para levar 4,7 mil litros de água por segundo pelos 83 km de tubulação, abastecendo 1,5 milhão de pessoas. Prevista para entrar em operação em 2018, serão beneficiados diretamente moradores de Barueri, Carapicuíba, Cotia, Itapevi, Jandira, Santana de Parnaíba e Vargem Grande Paulista. Mas a iniciativa trará benefícios indiretos para toda a região metropolitana de São Paulo, já que o novo sistema produtor será interligado a outros sistemas existentes.
Atualmente, a Sabesp tem capacidade instalada para produzir 73 mil litros/segundo. Com a entrada do sistema São Lourenço, esse volume chegará a 77.700 l/s. O investimento será feito integralmente pelas empreiteiras. Além do bombeamento para superar o desnível de 300 metros, outra parte importante da obra é a tubulação que levará a água até as residências, o que inclui um túnel de 1.100 metros pela serra e uma passagem por baixo da rodovia Raposo Tavares, por meio de método não destrutivo. Em parte do trajeto, os tubos chegam a ter 2,10 metros de diâmetro.
Serão instalados também uma estação de tratamento de água, estações de bombeamento, além de reservatórios para armazenar um total de 110 milhões de litros de água.
E mais obras de grande porte devem sair, segundo o Plano Diretor de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, estudo concluído no ano passado pelo governo estadual. Segundo o plano, serão necessários investimentos de R$ 4 bilhões a R$ 10 bilhões em novos reservatórios, captações e sistemas de transferência. Para chegar a essa conclusão, o governo apontou 20 alternativas, desde o uso de água do Aquífero Guarani, o que foi descartado, até a busca em regiões mais distantes, como no Alto Paranapanema, obra de R$ 8,7 bilhões. Foram feitas simulações combinando dez das 20 propostas. Cada combinação seria suficiente para suprir a demanda até 2035.
Hoje, além da PPP São Lourenço, outros cinco projetos estão em curso com capacidade de acrescentar 15 mil litros por segundo à oferta hídrica. Faz parte dessa leva de soluções a construção das barragens de Pedreira, no Rio Jaguari, e Duas Pontes, no Rio Camanducaia, em Amparo, reserva estratégica para estiagem em Campinas e com vazões médias de 10 mil litros por segundo cada uma. O governo, durante a recente crise, publicou decreto para desapropriar as áreas e lançou edital para estudo de impacto ambiental.

Mais reservação – As alternativas mais grandiosas para prevenir a região metropolitana de perigosa escassez futura encontram eco na opinião de outros especialistas. O presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes-SP), Alceu Bittencourt, é um exemplo. Para ele, o estado de São Paulo, e a região metropolitana em específico, carecem de reservatórios suficientes para armazenar água bruta durante o período de chuvas. “É evidente a necessidade de construção de barragens e reservatórios”, disse.
Para Bittencourt, essa carência tem efeito negativo duplo. Quando há muita chuva os reservatórios transbordam e a água se perde nos rios. E quando há estiagem, como é o atual caso, não há reserva suficiente para suportar o consumo. “Não tem saída. Mesmo que todas as outras iniciativas sejam importantes, como a redução do consumo ou o reúso, a capacidade de reservação precisa aumentar”, disse.
Sua preocupação se baseia na projeção de que o consumo na região da macrometrópole de São Paulo vai aumentar em mais 60 m3/s (de 223 l/s para 283 l/s) até 2035, para atender o crescimento da população dos atuais 30 milhões para 37 milhões. Nesse caso, as cercanias de Piracicaba e Campinas teriam prioridade na construção de mais reservatórios. Não custa lembrar que as regiões foram as mais atingidas na estiagem atual e que essas bacias colaboram para o preenchimento do reservatório da Cantareira, que se encontra com nível inferior a 20% da sua capacidade.
Não à toa, a Sabesp afirma ter investido R$ 1,2 bilhão na ampliação do sistema de abastecimento de água entre 2008 e 2013. No total, foram 11 obras, que beneficiaram 20 milhões de pessoas, segundo a empresa. A ação mais importante nesse período foi o aumento da produção do Sistema Alto Tietê de 10 mil para 15 mil litros de água por segundo, que atendeu uma população de 1,7 milhão de pessoas na região leste de São Paulo.
Mesmo concordando com a política de ampliação de produção e reservatórios, Bittencourt reforça o coro de que as perdas precisam ser atacadas e de que há de se criar políticas de incentivo para reduzir o uso de grandes consumidores, indústria e agricultura. Nesse ponto, o reúso de água precisaria ser ampliado. No caso da indústria, porém, o presidente da Abes-SP acredita que já existe um incentivo natural para conservação da água disponível: as altas tarifas pagas pelo setor. “Eles pagam caro pela água da rede, por isso cultivam a cultura da racionalização”, lembrou.