Alimentos: Uso na extração do gás de xisto provoca substituição da goma guar

Química e Derivados, Extensa linha de hidrocoloides: várias alternativas à guar
Extensa linha de hidrocoloides: várias alternativas à guar

O mercado de hidrocoloides, gomas poliméricas extraídas de plantas, sementes e por biofermentação, muito empregadas na indústria de alimentos como espessantes e gelificantes, vive há pouco mais de um ano um momento inusitado. O desenvolvimento da exploração do shale gas (gás de xisto) – nova, barata e bem-sucedida empreitada norte-americana para se tornar independente de combustível e energia – provocou uma reviravolta entre produtores e consumidores de gomas.

Mercados aparentemente dissociados, o novo uso de uma goma muito importante no espessamento de sorvetes, congelados, molhos e temperos, a goma guar, como coadjuvante na extração no processo de fracking (fraturamento hidráulico das rochas subterrâneas) para extrair o gás de xisto, causou desabastecimento na indústria de alimentos e o consequente aumento de preço do aditivo. Como a indústria de energia tem forte poder de barganha, a produção dessas gomas, extraídas das sementes da leguminosa Cyamopsis tetragonolobus, disponível na Índia e no Paquistão (onde se concentram os produtores), ficou sobrevendida para utilização na água usada para extração nos novos poços de óleo e gás nos Estados Unidos.

Química e Derivados, Sobremesas com pectina: goma cítrica cresce de forma constante
Sobremesas com pectina: goma cítrica cresce de forma constante

Com alta viscosidade (6.000 cps, centipoise), suas propriedades emulsionantes, espessantes e aglomerantes são ideais para essa produção, sendo um aditivo importante na água arenosa injetada sob alta pressão nas fraturas das rochas para que o xisto betuminoso poroso se quebre e permita a recuperação do gás. Essa virtude, descoberta pelos técnicos das poderosas indústrias que exploram o shale gas nos Estados Unidos, elevou em mais de dez vezes o preço da goma guar no mercado. Segundo Arnaldo Siguemoto, diretor de vendas da DuPont, uma das líderes globais em hidrocoloides e outros aditivos para alimentos, o desabastecimento elevou o preço da goma guar, fornecida pela DuPont por meio da produção de parceiros na Índia e no Paquistão, de US$ 1,50/kg para até US$ 30/kg no momento de pico da demanda.

“O pior da crise já passou, mas mesmo assim o seu valor hoje está na faixa de US$ 12/kg, com uma oferta um pouco maior”, explicou Siguemoto. Mas o certo é que a goma guar jamais voltará a ser a mesma depois da descoberta de seu novo uso mais lucrativo para os produtores, principalmente porque a aposta no shale gas pelos Estados Unidos é política de estado, o que aumentará sua produção consideravelmente nos próximos anos e com certeza demandará muita goma guar (com risco de novos aumentos). Bom ressaltar que outras gomas, como a xantana, o CMC e a própria guar, são tradicionalmente empregadas na extração de petróleo para dar viscosidade aos fluidos de extração, mas a conclusão de que a guar é a ideal para o gás de xisto foi recente.

Substitutas – Além da alta no preço e da falta dessa importante goma no mercado, o efeito imediato foi a busca por alternativas nas formulações de uma infinidade de produtos alimentícios industrializados. A própria DuPont, segundo revelou Siguemoto, notou a migração em várias aplicações para as gomas xantana, produzidas pela empresa em fábrica na França e para o CMC (carboximetilcelulose), produzido em unidade na China. Já as gomas com menor viscosidade, como a pectina, não aproveitaram essa onda de mercado.

Química e Derivados, Goma carragena tem efeito gelificante e espessante
Goma carragena tem efeito gelificante e espessante

Outras empresas especializadas também passaram pelo mesmo dilema e precisaram encontrar alternativas para os clientes. Uma das principais distribuidoras de hidrocoloides, a Vogler Ingredients, resolveu a questão com o uso de uma goma específica do Peru, a Tara, originária do endosperma da semente da árvore de mesmo nome (Caesalpinea Spinoza), similar à carob, da qual se extrai outra goma famosa, a LBG (Locust Bean Gum). Segundo a gerente de pesquisa e desenvolvimento da Vogler, Ana Lúcia Quiroga, a empresa aumentou a importação da Tara, que possui viscosidade de mesmo nível que a guar (6.000 cps) e ainda pode ser combinada com a xantana para melhorar o efeito de textura.

A goma Tara da Vogler vem da empresa italiana Silva Team, também produtora de pectinas. A goma peruana é um polissacarídeo composto de manose e galactose que, como a guar, é solúvel a frio e proporciona viscosidade máxima em sistemas aquosos, lácteos e em sistemas de baixa solidez, em poucos minutos. Historicamente, tem preço competitivo, mas, com a alta na procura para substituir a guar, seu preço também subiu.

Uma vantagem da Tara é seu sinergismo com outras gomas, como a xantana, carragenas e ágar-ágar. A interação com a xantana, por exemplo, permite a formação de um gel elástico, forte e termicamente reversível, quando esta goma não consegue essas propriedades de gelificação sozinha. Um blend entre tara e xantana pode substituir uma tradicional mistura feita com a LBG com vantagem: a gelificação fica até três vezes mais potente.

Química e Derivados, Fibra de milho absorve até 20 vezes o seu peso em água e vira gel
Fibra de milho absorve até 20 vezes o seu peso em água e vira gel

A goma já é aplicada em vários produtos, como espessante em molhos, maioneses, gelificantes em preparações lácteas, texturizantes em panificações e como solução para combater sinérese (fenômeno responsável pela liberação de água do gel após pequeno aumento de temperatura) em queijos frescos. Só não é mais difundida porque a Anvisa ainda não autorizou seu uso em todos os produtos, como em gelados comestíveis e alguns néctares e bebidas.

Outros benefícios – Há também quem tenha visto na necessária substituição da guar uma oportunidade para melhorar os efeitos no produto final. É o caso de Marina Boldrini, gerente de marketing da CP Kelco, uma das principais produtoras globais de hidrocoloides, que conta também com fábrica de pectinas em Limeira-SP. “A goma guar é mais simples e, quando substituída por outras, como as pectinas e as xantanas, alia nas aplicações novas opções de texturas e maiores resistências químicas e térmicas”, afirmou Marina. Segundo ela, houve casos de troca em aplicações em iogurtes, molhos de saladas, sorvetes, massas, entre outros produtos finais.

Química e Derivados, Esperança (esq.) e Barbosa: CMC pode ter propriedades alteradas no reator
Esperança (esq.) e Barbosa: CMC pode ter propriedades alteradas no reator

Foi beneficiado também pela falta de goma guar o carboximetilcelulose (CMC), derivado de celulose (de madeira ou algodão), obtido pela reação da soda com a celulose, que gera álcali-celulose, a qual reage com o monocloroacetato de sódio (surgido da reação do ácido monocloroacético com a soda). Essa reação torna a celulose solúvel, transformando-a em um polímero muito empregado como goma em várias indústrias, como as de tintas e as de alimentos. “E ela tem a vantagem de ser preparada conforme a necessidade do cliente. Com o controle de processo no reator, podemos mexer na sua viscosidade, umidade e pureza, que para alimentos precisa ter grau de 99,5% seguindo normas internacionais”, explicou Antonio Luis Barbosa Filho, gerente de tecnologia da única produtora nacional de CMC, a Denver, de Cotia-SP. Com 1% de concentração, o normal em aplicações alimentícias, o CMC pode ir de 50 a 8.000 cps de viscosidade.

Empregado principalmente como espessante, mas também um eficiente estabilizante e retentor de água, o CMC, para substituir melhor algumas aplicações da goma guar, segundo Barbosa, teve suas propriedades reológicas (tixotropia) modificadas no processo. Por causa da viscosidade variável, ao contrário das gomas vegetais, que não são modificadas industrialmente, a tarefa ficou mais fácil. “Ele pode ir de baixa à alta viscosidade”, disse a gerente da Denver, Esperança da Costa Alves. E ainda conta com a vantagem de não deixar residual nos alimentos, sem alterar sabor, e com maior capacidade de retenção de água, o que preserva muitos alimentos, como pães industrializados, por exemplo (tipo Seven Boys). Houve substituição da guar em produtos panificados, sorvetes e sucos prontos.

Além da questão da goma guar, outro aspecto favorável para a Denver ter escoado bem sua produção de 9 mil t/ano de CMC na fábrica em Cotia foi o câmbio favorável para o único produtor nacional, que fornece tanto diretamente a clientes da indústria alimentícia como para formuladores de blends de gomas. Neste último caso, favorece o fato de o CMC ter grande sinergia com outras gomas, como a guar e a xantana, com aplicação principal em sorvetes.

O mercado de alimentos – no qual o CMC entra em vários produtos, para conferir viscosidade/cremosidade em achocolatados, sucos prontos, caldos, leite de coco – é o segundo em importância para a empresa, atrás apenas da indústria de tintas. Por ser alto retentor de água, o aditivo também é muito empregado na produção de refrescos em pó e para evitar a formação de gelo em sorvetes (o chamado cristal de gelo). Além disso, ele é naturalmente uma fibra solúvel, que pode ser aprimorada com modificações no processo. Embora naturalmente não seja resistente a meio ácido, pode ser modificado também pelo processo e tem sido muito aplicado em bebidas ácidas.

Gastronomia molecular – Independentemente de questões pontuais do mercado, os hidrocoloides, polímeros de cadeia longa e de alto peso molecular que se dispersam em água para dar os efeitos de espessamento, estabilização, formação de filmes ou encapsulamento nos alimentos e nas bebidas industrializadas, ganham espaço cada vez maior na tecnologia alimentar. Constituídos por extensa família de gomas, que podem ser empregadas sozinhas ou em blendas, esses aditivos têm status hoje fundamental para conferir texturas inusitadas para o consumidor.

“Os hidrocoloides, embora tenham ainda seu papel técnico tradicional, são vistos hoje como ingredientes capazes de reinventar produtos. As pesquisas se voltam para criar novas aplicações de gomas tradicionais e fazer pequenas modificações em seus efeitos que podem ser importantes para inovações”, explicou Ana Lúcia Barbosa, da Vogler Ingredients.

A gerente chama a atenção para o uso crescente de gomas para modificar texturas e criar produtos por meio da “gastronomia molecular”. Seria o caso, por exemplo, do emprego de alginatos (feofíceas laminarias, algas pardas) – utilizados tradicionalmente como espessantes e gelificantes em sorvetes, congelados e produtos para massas – em produtos diferentes, como esferas gelificadas de caipirinha que conseguem agregar a cachaça, o limão e o açúcar. Há casos também, com as mesmas gomas, de novos formatos de macarrões e outras massas.

“O mercado preza o tradicional, mas está demandando novidades. E as gomas podem ser ótimas aliadas no propósito”, disse Ana Lúcia. Outro desenvolvimento recente visou o uso de pectinas para manter suspensos pedaços de frutas em bebida alcoólica. Mais do que esses casos, porém, sua constatação vem da experiência no atendimento a clientes que consomem os dois grandes grupos de gomas representados pela Vogler: as voltadas para viscosidade (textura) e as gel formadoras.

No primeiro grupo, destaque para as gomas xantana, cuja versão representada é a da chinesa Deosen; guar (indiana Hindustan); CMC (carboximetilcelulose, da CP Kelco); carragenas (chilena Gelymar), pectinas e goma Tara (italiana Silva Team) e para a goma acácia ou arábica (americana TIC Gums). No caso das formadoras de gel, são versões de carragenas, pectinas, gelatina (PB Leiner) e agar (da peruana Algamar).

As inovações apontadas por Ana Lúcia não envolvem apenas a chamada gastronomia molecular originalmente mais presente em restaurantes experimentais, mas na própria indústria. “É cada vez mais comum produtores de sorvetes ou iogurtes desejarem manter sementes e pedaços de frutas suspensos. Podemos vender tanto gomas sozinhas como soluções completas que envolvem mais de uma goma”, disse. Um exemplo de inovação é o ingrediente multifuncional Ztrin, fibra de milho que tem a capacidade de absorver vinte vezes mais o seu peso em água. “Podemos fornecê-lo com a água incorporada, transformando-o em gel para uso como agente de textura e para manter panificados, como o panetone, mais macios”, disse.

Globais – Os fabricantes globais de gomas instalados no Brasil também disponibilizam todo o portfólio de produtos vindos de suas várias fábricas pelo mundo. A DuPont, que ganhou grande força no mercado após adquirir a dinamarquesa Danisco em 2010 por US$ 6 bilhões, é um exemplo, visto a linha comercializada no país formada por pectinas, carragenas, goma guar, CMC, alginatos e MCC (celulose microcristalina).

Por serem de origem vegetal, as gomas vêm de fábricas instaladas em regiões ricas na matéria-prima do hidrocoloide em questão. No Chile, há unidade das carragenanas (iota, kappa e lambda), costa litorânea com fartura de algas; no México, as pectinas, por ser o país um grande produtor de limão; o LBG, em Valência, na Espanha, onde há a semente de algarroba no Mediterrâneo; a xantana, na França, onde há fábrica para biofermentação de carboidrato; o CMC, de fábrica chinesa com baixo custo de produção, obtido da celulose de madeira e algodão; alginatos, oriundos de algas na Costa da França; e guar, de empresas parceiras da Índia e do Paquistão.

Segundo Arnaldo Siguemoto, dentro do portfólio de produtos, a DuPont nota especial desempenho de mercado das pectinas, o que deve provocar novas ampliações produtivas. “Ao contrário das outras gomas, com desempenho sazonal e dependentes de clima e safra, a pectina é um mercado estável, que cresce globalmente 5% ao ano, sem oscilações”, disse. E, além disso, trata-se de uma especialidade, que pode ter variações para aplicações diversas, na estabilização de proteínas, bebidas, laticínios, sobretudo para uso em meio ácido. Para a DuPont, aliás, o setor de alimentos é estratégico. Dos seus US$ 2 bilhões investidos em pesquisa em 2012, 85% foram voltados para a área de nutrição, que inclui ainda sementes e proteção de colheita (defensivos). Além de alimentos, o foco do grupo norte-americano está voltado para a geração de energia e para a área de defesa.

Química e Derivados, Maria: situação política estável e clima garantem abastecimento
Maria: situação política estável e clima garantem abastecimento

A CP Kelco, com fábrica de pectinas em Limeira (ex-Braspectina), aproveita a alta produção de cítricos da região e também vê oportunidades na pectina, especificamente em novas tendências de melhoria de sensorial em produtos com baixo teor de açúcar, por exemplo. Segundo a gerente Marina Boldrini, a pectina é ótima como agente gelificante, estabilizante proteico, formador de filme, encapsulante e texturizante em meio ácido; e ultimamente tem sido usada para melhorar produtos que removem açúcar. “A retirada do componente compromete o sensorial e aí um hidrocoloide entra para deixar o sensorial mais agradável”, disse. Em breve, a empresa lançará pectina com textura extrudável e lisa e nova gelana com melhor resistência térmica.

Além da pectina, outra goma empregada para isso é a gelana, obtida da folha do lírio aquático. Até pouco tempo patente da CP Kelco, essa biogoma, segundo Marina, é um polímero único, que consegue suspender proteínas, minerais, vitaminas e, por exemplo, cacau em achocolatados, melhorando o sensorial sem tornar o produto viscoso. “Ela gera minigéis, formando uma rede tridimensional, que suspende sem dar viscosidade, como outras gomas, caso da xantana”, afirmou.

A linha da CP Kelco inclui ainda CMC, da qual é a maior produtora global, com fábrica na Finlândia (antiga Noviant) e na China; carragenas, LBG e xantana (EUA e China). A empresa também produz um soro de leite microparticulado, utilizado como agente de cremosidade e substituto de gordura, que mimetiza o sensorial do produto.

Química e Derivados, Árvore acácia senegal: ocorrência no Sub-Saara
Árvore acácia senegal: ocorrência no Sub-Saara

Acácia – Ao contrário da apontada constância do mercado de pectinas, as gomas dependentes de extrativismo vegetal são mais suscetíveis a intempéries climáticas e até políticas, o que compromete o seu abastecimento de tempos em tempos. Um exemplo ocorre com a goma acácia, ou arábica, hidrocoloide tradicional para estabilizar emulsões de óleo em água, sobretudo aromas, mas também empregada para secagem de líquidos em confeitos.

Por ser cultivada da seiva da árvore acácia, encontrada em países africanos como Sudão, Mali, Mauritânia e Somália, quando há quedas na temperatura da região subdesértica (o que ocorreu há alguns anos em virtude de mudanças climáticas), a produção cai, desabastecendo o mercado mundial e aumentando seu preço. Outro problema são os constantes conflitos políticos, sobretudo no principal país da região, o Sudão, o que dificulta seu cultivo.

Atualmente, porém, esse mercado está protegido desses acontecimentos: o clima está adequado e a situação política mais tranquila. “Há uns três anos a situação está estável e por isso o mercado anda bem abastecido”, afirmou Maria Fernanda de Oliveira, da assistência técnica da francesa Nexira, líder do mercado mundial, com 45% da produção de 60 mil toneladas da goma acácia.

Química e Derivados, Árvore seyal: ocorrência no Sub-Saara
Árvore seyal: ocorrência no Sub-Saara

A goma é disposta em dois tipos principais: a Seyal e a Senegal. A primeira é considerada uma commodity, vendida a uma média de 7 dólares/kg e com aplicação principal em encapsulação (balas do tipo M&M), enquanto a segunda é mais nobre, cerca de 12 dólares/kg, com maior poder emulsificante e empregada mais em aromas.

A goma acácia se dissolve rapidamente em água quente e fria. É considerada a mais solúvel entre os hidrocoloides, com a viscosidade mais baixa (5 cps a 1%). Em concentrações de 55%, ela se equipara a concentrações médias de 5% de outras gomas convencionais. Daí se compreende porque ela não é considerada um gelificante ou espessante, no máximo consegue ser emulsificante de balas de gomas.

A fábrica da Nexira na França, responsável pela secagem da goma bruta, que chega em pedras e é dissolvida em água, produz quase 20 mil t/ano da goma, exportando quase 90% da produção. Além das funções técnicas, a acácia funciona como agente nutricional, em razão de sua riqueza de fibras solúveis. Essa qualidade já é responsável por boa parte das vendas do aditivo, em iogurtes, achocolatados e também em barras de cereais, produtos nos quais a acácia é empregada também para dar liga aos ingredientes. No Brasil e no mundo, a Nexira tem como principal concorrente a norte-americana Tic Gums, representada no território nacional pela Vogler.

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