Água: Indústria química faz plano de contingência e amplia reúso para superar período de seca
Assunto obrigatório em várias regiões do país, a escassez de água obviamente preocupa à indústria química, usuária intensiva desse líquido. Preocupação, aliás, fundamentada em experiências concretas, vividas por empresas do setor: caso da Rhodia (grupo Solvay), recentemente obrigada a paralisar a produção de algumas unidades de seu site de Paulínia-SP devido à reduzida vazão do rio Atibaia, do qual se abastece. Pouco depois desse episódio, as agências reguladoras do uso da água determinaram às empresas abastecidas por esse mesmo rio a diminuição do uso desse insumo em índices variáveis entre 20% e 30% a partir de determinado patamar mínimo de vazão (do qual já não se estaria muito distante).

A Rhodia (ver box) afirma estar preparada para essa possibilidade de menor captação. “Mas, de maneira geral, é difícil imaginar redução dessa magnitude no uso da água sem causar impacto nas atividades industriais”, observa Nelson Pereira dos Reis, presidente do Sinproquim (Sindicato das Indústrias de Produtos Químicos para Fins Industriais e da Petroquímica no Estado de São Paulo) e vice-presidente e diretor titular do departamento de meio ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp.
Segundo ele, existem relatos de indústrias que, de outubro para cá, já paralisaram suas atividades por cerca de quarenta dias por falta de água. “Talvez não haja redução da produção industrial total, mas apenas porque o setor não está trabalhando com capacidade plena”, avalia.
Premido por essa conjuntura e pelas preocupantes perspectivas futuras, o setor químico estruturou no final do ano passado, na Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química), um grupo de trabalho especificamente focado na antecipação e na prevenção de possíveis impactos da escassez desse recurso: denominado GT de Água, ele já reúne as empresas Dow, Braskem, Cabot, Rhodia/Solvay, Basf, Elekeiroz e Nalco (e brevemente também a Givaudan). Mas antes mesmo dessa iniciativa, motivado também pelos fatores econômicos e ambientais associados ao uso da água, já há algum tempo o setor investe para melhorar o aproveitamento do insumo, tendo obtido resultados significativos (ver Tabelas).

Com esse trabalho prévio, provavelmente não haverá necessidade de paralisação ou de atenuação dos processos produtivos das empresas do setor, crê Luiz Oliveira, coordenador do GT de Água da Abiquim e gerente de saúde, segurança e meio ambiente da Dow. Ou melhor: “não deverá ocorrer paralisação ou redução do processo de produção nas indústrias que dispõem de um plano de contingência”, ressalva.
Indispensável, esse plano de contingência destinado a antecipar e minimizar possíveis impactos de restrições maiores ao uso de água, destaca Oliveira, precisa considerar não apenas os recursos específicos da empresa – como estoques, mão de obra e fontes de abastecimento –, mas toda a cadeia de valor: fornecedores, distribuição, logística, integrando a gestão dos recursos hídricos com a gestão ambiental.
Deve também ser formulado em parceria com agências e comitês de bacias hidrográficas, responsáveis pela administração do uso dá água nas várias regiões do país para antecipar possíveis variações nos cenários nos quais se desenvolvem as operações industriais. “Alterações nos níveis dos cursos componentes das bacias hidrográficas, por exemplo, impactam as possibilidades de captação de água e de geração de efluentes da indústria”, justifica Oliveira.

Reciclar é preciso – A elaboração de planos de contingência não dispensa as indústrias da busca por contínua otimização do uso da água. E, nessa agora obrigatória procura, torna-se a cada dia mais valorizada a possibilidade de reaproveitamento da água previamente utilizada tanto nos processos produtivos quanto nas chamadas utilidades (limpeza, irrigação e consumo humano, entre outras).
No Brasil, preconceitos ainda inibem uso mais intensivo da água de reúso, observa Dante Ragazzi Pauli, presidente nacional da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental) “Tal preconceito se manifesta em vários países, mas existem hoje tecnologias capazes de gerar água de reúso com qualidade superior à da água potável convencional”, salienta.
O reúso é apontado como medida importante de redução do consumo de água também por Giuliano Dragone, presidente do Sindcon (Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto). Essa busca pela redução de consumo, ele prevê, será intensificada não apenas pela escassez, mas também pela elevação de seu preço, decorrente tanto do aumento do preço da energia – um dos principais componentes dos custos das concessionárias –, quanto da diminuição da receita dessas empresas em consequência da racionalização do uso da água por parte de seus clientes. “No Brasil a água ainda é barata, mas esse preço vai subir, e não subirá pouco”, projeta Dragone.

Porém, ao menos no curto prazo, ele restringe as possibilidades de problemas maiores de abastecimento basicamente às regiões norte e leste da região metropolitana de São Paulo, mais dependentes do sistema Cantareira, o mais afetado pela estiagem. “Na região do PCJ, se houver algo mais agudo será porque a natureza não deixou nenhuma alternativa, pois lá as concessionárias têm feito bem o seu trabalho”, afirma Dragone, referindo-se à região formada pelas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, onde estão situados municípios como Campinas e Paulínia, entre outros.
Além disso, quaisquer impactos da escassez de água serão hoje muito menos sentidos do que ocorreria caso tal problema acontecesse há dez ou quinze anos, ressalta Reynaldo Young Ribeiro, presidente da AESabesp (Associação dos Engenheiros da Sabesp, composta por profissionais de engenharia da concessionária responsável por água e saneamento na Grande São Paulo e em outros municípios paulistas).
Afinal, ele justifica, já há vários anos a indústria brasileira trabalha para otimizar o uso desse insumo, e as empresas mais estruturadas do setor já desenvolveram seus planos de contingência. “A indústria nacional tem um elevado índice de reutilização da água e, embora não seja o maior usuário desse recurso – posição ocupada pela agricultura –, é o setor mais preparado para enfrentar possíveis problemas”, analisa Ribeiro.
Ele sugere, como medida capaz de incrementar ainda mais os índices de aproveitamento da água pelas empresas brasileiras, uma legislação com benefícios tributários para projetos destinados a aprimorar a gestão desse recurso. É o caso, por exemplo, da implantação de estações de reúso e aquisição de novos equipamentos. “Já temos no Brasil tecnologia de ponta e profissionais capacitados para lidar com essa questão”, ressalta o dirigente da AESabesp.

Demanda alta, preços em baixa – Evidenciada mais nitidamente a partir de meados do ano passado, a possibilidade de crise no abastecimento de água em algumas partes do país vem sendo aventada há algum tempo. Reis, do Sinproquim, lembra que há alguns anos a Sabesp destacou a necessidade de obras indispensáveis para a continuidade da oferta do insumo na Grande São Paulo. Entre elas, o chamado Sistema Produtor São Lourenço, cujo objetivo é ampliar a oferta de água tratada para essa região, e que deveria ter entrado em operação em 2011 (mas apenas recentemente foi retomado). “Entramos, porém, em um período hidrologicamente mais favorável, e praticamente nada se fez”, ele critica. E o verão está acabando.
Mas, assim como a possibilidade de crise, manifesta-se também a demanda dirigida aos provedores de soluções para otimização do consumo de água. Na EP Engenharia, por exemplo, no ano passado os negócios registraram aumento de aproximadamente 30% em relação a 2013. “E este ano deveremos crescer em índice similar”, calcula Otávio Riedel Almeida, coordenador de projetos da empresa, fornecedora de projetos e de equipamentos para essas aplicações, como skids de osmose reversa e vasos de pressão para troca iônica, entre outros.

Atualmente, diz Riedel, as tecnologias possibilitam o tratamento de qualquer gênero de efluente, e a reutilização de sua água tanto em usos mais básicos – como na lavagem de pisos e descarga em sanitários –, quanto em aplicações mais nobres, que exigem a eliminação dos sais nela presentes, por exemplo, em torres de refrigeração e em caldeiras. Não há, ele afirma, definições precisas sobre os volumes mínimos capazes de justificar ou não o reúso da água, mas a EP considera tal reaproveitamento viável a partir de uma vazão mínima de cinco metros cúbicos por hora.
Para a reutilização da água em aplicações mais básicas, especifica Riedel, bastam tratamentos simples, como oxidações, polimento e filtração. Já água de reúso desmineralizada – passível de aproveitamento nos processos industriais críticos – é atualmente obtida a partir da troca iônica ou por osmose reversa. “Essas duas tecnologia atingem objetivos similares, mas a troca iônica tem custo de implantação menor, e em contrapartida custo operacional maior”, compara.

Também começa a se consolidar, ressalta Riedel, uma tecnologia denominada EDR (Eletrodiálise Reversa), apta a concorrer com ambas as anteriormente citadas. Ela utiliza membranas seletivas que, estimuladas por corrente elétrica, conseguem separar cátions e ânions, desmineralizando a água que flui através delas (no Brasil, a Petrobras já usa em escala piloto essa tecnologia para gerar água de reúso em uma de suas refinarias). “Ela não dispensa o pré-tratamento, mas é menos exigente quanto à qualidade de água de alimentação; por ter ainda uma quantidade pequena de fornecedores, seu custo é mais elevado no momento”, explica o especialista da EP.
Segundo ele, vem caindo o custo das tecnologias de reuso. “Uma membrana de oito polegadas, por exemplo, há três ou quatro anos não saía por menos de R$ 5 mil, mas hoje pode ser encontrada por cerca de R$ 2 mil”, exemplifica Riedel.
Essa queda nos preços das membranas é confirmada por Renato Ramos, gerente de marketing para a América Latina da área de tratamento de água da Dow (um dos grandes fabricantes mundiais desses produtos). Como informou, o custo de implantação de um projeto de tratamento de água via membranas de ultrafiltração é atualmente compatível com o de um projeto para tratamento convencional. “Considerando a redução na produção de lodo, menor necessidade de atuação do operador, menor manutenção e menor consumo de químicos, o custo operacional do sistema de membranas algumas vezes chega a ser até 40% inferior”, ressalta.

Existe, diz Ramos, uma visão errônea das membranas como consumidoras intensivas de energia (assim como a água, insumo cuja oferta hoje também preocupa). Há, porém, membranas de baixa energia, que consomem cerca de 0,08 kWh por m³ de água e, por ultrafiltração, produzem água que pode ser aproveitada nas chamadas utilidades de processo. Já as membranas para osmose reversa exigem cerca de 0,6 kWh por m³ em aplicações industriais, e geram água desmineralizada apta ao aproveitamento em operações como resfriamento e geração de vapor em caldeiras.
Na opinião de Ramos, dada a sua qualidade e a consequente minimização dos custos de manutenção dos equipamentos, mesmo considerando o consumo energético do processo, a água proveniente da osmose reversa tem preço competitivo com aquela oriunda das fontes convencionais, como captação direta de rios e concessionárias. No Maranhão, relata, uma empresa siderúrgica aplica essa tecnologia até para dessalinizar – e utilizar em seus processos – a água do mar (aplicação na qual, devido à necessidade de retirada de alta concentração de sais o consumo de energia pode chegar a 3 kwh por m³).

Legislação inexistente – Teoricamente, o reúso de água parece agora uma iniciativa recomendável por diversos fatores: entre eles, a necessidade de manter o suprimento desse insumo, e atender os preceitos da sustentabilidade ambiental. Porém, considerada apenas em seus aspectos financeiros, no Brasil nem sempre essa é uma opção vantajosa, afirma Sergio Werneck Filho, presidente da Nova Opersan (empresa de soluções relacionadas a abastecimento de água e tratamento de efluentes com cerca de 450 clientes em sua carteira). “Dadas as médias das tarifas de água hoje existentes no país, aqui o reúso ainda é financeiramente pouco atrativo”, argumenta.
Mesmo na Grande São Paulo, especifica Werneck, dependendo do contrato estabelecido por uma indústria com a concessionária, o reúso pode ser financeiramente pouco interessante. “Mas, se as fontes tradicionais começam a escassear, é preciso pensar em outras possibilidades, e essa se torna uma alternativa a ser mais considerada”, pondera. “Não há nenhum problema de viabilidade técnica para o reaproveitamento de água; em Cingapura, água de reúso é destinada até mesmo para abastecimento doméstico”, ressalta.

Reciclar a água para reaproveitá-la não é medida de implantação imediata. Dependendo do porte da empresa e da qualidade de seus efluentes, entre o estudos iniciais e o start up da operação, um projeto de uma estação de tratamento e reúso pode consumir até dois anos, calcula Mauro Gebrim, gerente comercial da Enfil (provedora de soluções ambientais que no segmento industrial atende cerca de 120 clientes).
Gebrim considera o reúso da água alternativa competitiva com as opções mais tradicionais de abastecimento também nos quesitos financeiros, e crê que, mesmo sendo seu custo final superior aos cobrados por concessionária ou ao da captação direta, esse reaproveitamento pode ser importante por ajudar a empresa a se tornar autossuficiente no insumo, hoje estratégico. A análise desse custo, ele observa, deve considerar tanto a implantação quanto a operação: “Muitas vezes um custo de implantação maior pode ser compensado com um custo operacional menor”, argumenta Gebrim.

Mas obstáculos cuja remoção não depende apenas das empresas podem, por enquanto, impedir uma elevação acelerada dos índices brasileiros de reúso de água. Entre eles, destaca-se a inexistência de normas específicas para essa reutilização. “Não existe nem lei federal nem estadual sobre esse tema, e as operações de reúso ficam dependentes das licenças dos órgãos ambientais que podem não apenas ser muito rígidos, mas variar bastante de um órgão para outro, e mesmo entre os escritórios regionais de um mesmo órgão”, relata Diego Domingos da Silva, encarregado de engenharia da unidade de negócios Mizumo, do grupo Jacto.
Como produtos de linha, a Mizumo fabrica estações de tratamento de efluentes sanitários – provenientes de indústrias e de outros ambientes corporativos –, com capacidade variável entre quatro e 360 metros cúbicos por dia; sob demanda, desenvolve também projetos dedicados a volumes maiores. A água proveniente dessas estações pode ser imediatamente empregada em atividades como limpeza de pisos e irrigação, e se passar também por filtração estará apta ao uso em sanitários. Para empregá-la em processos industriais, é preciso submetê-la também a tratamentos com membranas ou tecnologias afins.

Nos últimos meses, relata Silva, aumentou significativamente a procura por essas soluções e a área de pós-venda da Mizumo vem sendo bastante demandada por empresas que já as usavam apenas para condicioná-los para descarte, mas pretendem agora reutilizar a água neles existente. “E, se até há não muito tempo, menos de 5% da demanda por nossas soluções previa reutilização, esse índice está hoje próximo de 80%”, complementa.
Diversificação das fontes – A busca por novos canais de abastecimento é item também presente nas estratégias montadas pela indústria química para enfrentar a seca. Entre as fontes antes desprezadas, mas agora valorizadas, aparece a água de chuva, que a Dow pretende aproveitar em maior escala com um projeto, iniciado no ano passado, em seu site de Guarujá-SP. Composto pela construção de um tanque de armazenamento e ajustes na bacia de contenção, tem por meta recuperar anualmente 50 milhões de litros de águas pluviais.
Deve se acentuar também a abertura de poços artesianos, que a Fiesp busca incentivar com um estudo – cujos resultados iniciais devem ser divulgados em março –, destinado a averiguar o potencial de exploração de águas subterrâneas ainda existente em regiões como a Grande São Paulo e a bacia administrada pelo consórcio PCJ. “As empresas decidirão o que fazer com os resultados desse estudo, podendo inclusive pensar em explorar conjuntamente eventuais novos poços”, pondera Reis.
Ele qualifica como “estressante” o cenário atual, no qual o problema da falta de água – e possivelmente também de eletricidade – combina-se com uma conjuntura econômica desfavorável. “A indústria química será uma das mais impactadas por essa conjuntura, pois depende muito de água; a preocupação no setor é enorme”, enfatiza o vice-presidente da Fiesp.
Mas também empresas sucroalcooleiras começam a ter suas atividades prejudicadas pela falta de água, diz Riedel, da EP Engenharia. “Teremos, provavelmente, um único impacto positivo dessa escassez: todos irão repensar os conceitos de uso desse bem”, afirma.
Esse uso mais consciente é prognosticado também por Ramos, da Dow. Ele vê, nessa necessidade de racionalização no uso da água um estímulo ao seu reúso em maior escala nas empresas já dotadas da tecnologia necessária para tanto. “Até por questões de segurança operacional, grande parte das indústrias brasileiras já utiliza processos de desmineralização da água, muitas vezes se valendo de membranas; elas poderiam reaproveitar essa água, em vez de simplesmente descartá-las, como fazem várias delas”, observa.
Caso planeje otimizar seu consumo de água, uma indústria deve inicialmente fechar seus circuitos sempre que isso for possível, recomenda Gebrim, da Enfil. “Muitas operações industriais, como resfriamento, podem ser realizados em circuitos fechados e, com isso, seu consumo de água se não é zerado, é significativamente reduzido”, exemplifica. “Simultaneamente, deve-se desenvolver um trabalho intenso de minimização das perdas em pontos de consumo e nas redes de distribuição, e considerar seriamente a possibilidade do reuso”, finaliza.